Raiz ainda é analógica

Cresci no interior da Bahia, em um município da região metropolitana de Salvador chamado Catu, o nome faz referência à luta e à resistência indígena, mas isso eu só fui descobrir já adulta. A cidade mesmo é conhecida por geograficamente ser estratégica para implantação de empresas de petróleo, nada relacionado à arte. Quando reflito sobre minha trajetória, entendo de um jeito até romantizado e clichê que a fotografia, que foi a porta que me levou para direção de filmes, estava ali se apresentando para mim como um fôlego de vida.

Aos 10 anos descobri que sou filha adotiva, e sinto que naquele momento algo na minha comunicação foi travada, não tão logo, achei um tesouro guardado na gaveta da minha mãe, uma yashica mg-2, e foi aí que um mundo de possibilidades se abriu diante dos meus olhos. A fotografia analógica foi meu gênesis, eu aprendi a falar, escutar, ter paciência com o mundo ao meu redor. Aprecio a fotografia digital, mas não com o mesmo entusiasmo que venero a analógica. Existe algo lento no processo que eu entendo como o tempo necessário que uma fotografia precisa ter para só então poder saltar nos nossos olhos. Beira o mágico, é um respeito com o tempo das coisas, eu diria.

Volta e meia eu tento resgatar aquela menina do interior que fui, dos olhos que pescam encantamento, e de alguma forma tento traçar esse caminho de um olhar livre. Em uma dessas, esbarrei em uma preciosidade com a qual estou profundamente imersa e conectada no momento, o álbum ‘Caju’, de Liniker, tem algo de fílmico e analógico no desenrolar da narrativa e progressão do álbum, as músicas têm textura, grão, cor e atmosfera, me parece aquele sentimento de alinhamento de universo que sentimos quando chegamos na exposição correta de uma foto preto e branca que foi feita com a pose número 36 do filme analógico.

Além da música, tenho uma dedicação quase religiosa de assistir a um filme na Mubi por semana. Por indicação de uma amiga, assisti ‘Às vezes quero sumir’, de Rachel Lambert. É um filme com uma premissa simples: o dia a dia, as poucas novidades que acontecem na vida da personagem, que, em momentos de devaneio, pensa em desaparecer. As imagens que povoam sua mente são apresentadas ao público quase como uma fotografia, um frame estático que nos transporta para aquela sensação. Isso me fez lembrar de um trecho do livro ‘Sobre fotografia’, de Susan Sontag, que diz: “todas as fotos são memento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa. Precisamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo”.

Acredito que seja por isso que, sempre que estou no início de uma produção, penso em uma única imagem que poderia descrever esse filme, mesmo que de forma subjetiva ou semiótica, e a partir dela a ideia cresce. Esse é um exercício que faço e sinto que tem conexão com essa eu menina do interior, que tateia e sente as imagens antes de colocá-las à disposição e interpretação do público. Elas precisam, antes, me tocar e fazer sentido para mim.

Acredito que a inspiração é uma linha invisível que se encontra no meio da rotina, do banal, do corriqueiro. Diante de tantos estímulos que temos hoje, é preciso manter os sentidos livres para receber o que a vida nos reserva. E quando nada chega, não significa que está vazio, mas sim que esses sentidos precisam de um tempo para se renovar.

A fotografia analógica sempre foi um artefato caro e, por não ter recursos financeiros quando comecei, aprendi muito com a escassez, o reaproveitamento e o experimento. Para mim, a fase de experimentação é a mais preciosa. É nela que nos moldamos, pois é durante o processo que a inspiração ganha movimento, ritmo e potência para crescer com embasamento e essência, e, assim, inspirar o público.

Juh Almeida é diretora na produtora Café Royal