Sou um cara de sorte

Giovana Madalosso escreveu na Folha, semana passada, um texto que é uma paulada nas grandes agências de publicidade. Suponho que todos já tenham lido. Ainda que os fatos narrados não sejam novidade, escrever e assinar um artigo crítico sobre eles num jornal do tamanho da Folha, isso, sim, é novo.

Giovana reconhece que só tomou coragem para escancarar os bastidores de um negócio tido como glamouroso, porque não precisa mais dele. Uma espécie de desabafo de libertada. Tive a sorte de trabalhar em propaganda quando propaganda ainda era arte e entretenimento, muito bem remunerados, aliás. Período que durou, quero crer, até o finzinho dos anos 1990.

Tive a sorte também de trabalhar, quase sempre, para gente sensível e empática. Mesmo os mais mal-humorados, nas questões humanas sérias, eram empáticos. Por alguns anos, no início com sócios, depois, sozinho, toquei a minha agência. Seguindo os exemplos aprendidos, formei ambientes onde todos se respeitavam. Mesmo depois de encerradas as atividades da agência, ex-funcionários costumavam se reunir comigo, todos os anos, para comemorarmos a nossa amizade.

Bom sinal. Quando fui convidado para dirigir a criação de uma multinacional, em Buenos Aires, encontrei um ambiente não exatamente igual, mas bastante aceitável. Tanto aqui, quanto lá, nunca precisei chegar cedo ou sair tarde das agências em que trabalhei. A minha percepção sobre as condições de trabalho do negócio mudaria, na volta ao Brasil.

Lembro-me de, numa reunião, um alto executivo jactar-se para o cliente de que a agência funcionava sete dias por semana, 24 horas por dia. Por quase um ano, confirmei que ele não exagerara. Foi aí que saquei que a propaganda já não era mais o que eu tinha aprendido sobre ela. Ia desistir. Tive sorte, porém, mais uma vez.

Uma amiga, que mantinha uma agência no interior de Santa Catarina, me perguntou se eu toparia acompanhá-la na jornada. Gostei da ideia, inclusive pela distância segura que manteria da Faria Lima e da Berrini. Foram seis anos e meio muito gostosos, tratando de imprimir um padrão saudável de trabalho. Missão cumprida, resolvi deixar o cotidiano da agência para os mais jovens, e fui para casa.

Daí em diante, tudo o que sei sobre o mercado é lendo e o que me é relatado por colegas. Curioso é que, tanto empregados quanto patrões, são unânimes em assumir que o prazer pelo trabalho acabou. Acrescentando-se o que Giovana relata, não só o prazer acabou, como também passou a reinar um doloroso sofrimento entre aqueles que, por necessidade, resistem a abandonar seus empregos.

O fato é que a propaganda (não só a propaganda, mas o “sistema”) forjou alguns monstrinhos e monstrinhas, que conseguiram superar os patrões, em termos de crueldade e perversidade. São pessoas que desistiram de ser felizes, e rifaram suas almas à profissão; gente que renunciou a qualquer afeto, pelo direito de frequentar salas VIPs, voar em classe executiva e se hospedar em bons hotéis de cidades charmosas. Os fabricantes de antidepressivos agradecem.

Stalimir Vieira é diretor da Base de Marketing
stalimircom@gmail.com