Suave coisa nenhuma

Tenho um pequeno escritório em casa, de onde trabalho remotamente. Aliás, foi nesse escritório que escrevi boa parte desse texto.

Ao lado da mesa em que fica o meu computador, uma estante reúne alguns dos meus livros preferidos. Ulisses, do James Joyce, o livro da minha vida que acaba de completar 100 anos; os três volumes de Mitologia Grega, do professor Junito de Souza Brandão; Pnin, do Vladimir Nabokov; e A Sociedade do Espetáculo, do Guy Debord, entre outros.

Nessa estante, há também uma máquina de escrever antiga. Uma pequena estátua da deusa grega Atena que o Zig, nosso gato que não é muito bom em ser gato, já fez o favor de quebrar.

Nas paredes, estão pendurados alguns desenhos do meu filho Antônio: o cara é tão fascinado por folclore brasileiro que sempre espalha suas lindas criaturas pela casa.

Para completar o retrato desse meu microcosmo de inspirações, tem também
um quadro. Por estar posicionado na parede em frente ao computador, esse quadro acabou virando meu fundo de tela para as reuniões no Teams. Nele, o marrom do papel kraft serve de base para o seguinte texto, escrito em vermelho-sangue: Suave coisa nenhuma.

Mas, embora “suave coisa nenhuma” seja um trecho da música Amor, dos Secos e Molhados, esse texto não é bem sobre amor. Esse texto é sobre raiva.
Sou um criativo movido a raiva. Mas quem vem cruzando comigo ao longo destes 20 anos de profissão pode discordar disso. Raiva e Jairinho na mesma frase? Impossível.

Afinal, tenho a aura agressiva de um pintinho de pelúcia com uma faca de plástico na mão. Herdei a calma e a fala pausada do meu pai. Já a abordagem sempre positiva para a resolução de problemas veio da minha mãe. Ele, baiano; ela, pernambucana: esses dois aí transbordam amor. Meus pais são foda.

Essa base formou em mim uma raiva que traz potência e senso do dever, mas também respeito e amor pelo outro... E me fizeram crer que talento e generosidade precisam circular. E que, às vezes, a gente tem de ser um leão para continuar sendo o cordeiro que sempre foi.

Ter raiva funciona, gente. Como naquele Corinthians e Palmeiras das semifinais da Libertadores de 2000. Claramente favorito, o time do Corinthians era muito melhor. Mas, durante a preparação para o jogo, vazou um áudio do Felipão, então técnico palmeirense, motivando seus jogadores com a frase que mudou tudo: “Tem de ter raiva dessa porra desse Corinthians”.

Deu certo. Os caras tiveram raiva demais, desclassificaram a gente e geraram uma lembrança futebolística que me dói até hoje. Raiva. Está aí um sentimento poderoso, que já guilhotinou reis e rainhas, entre outros gestos bonitos que fazem do mundo um lugar melhor.

Se eu comecei falando de Secos e Molhados, vou terminar com outra obra-prima que insistiu em entrar nessa conversa. Na música O Ronco da Cuíca, João Bosco e Aldir Blanc denunciaram: “Roncou, roncou, roncou de raiva a cuíca, roncou de fome. Alguém mandou, mandou parar a cuíca, é coisa dos home”.

É isso: para mim, a raiva está junto da fome. Raiva é inspiração, mas também é sobrevivência. É combustível para juntar tudo o que eu amo, para criar histórias que eu ame e possam tocar as pessoas.

Mas não foi coincidência a palavra amor ter se revelado tantas vezes ao longo desses parágrafos. Pelo visto, o texto estava querendo me dizer algo, e acho que ele está certo: o assunto aqui é raiva.

Mas também é amor. Porque outubro está chegando e a gente vai precisar de muita raiva e muito amor para enfrentar o que vem por aí. Tem gente doidinha para mandar parar a cuíca. “É coisa dos home”, e a gente já sabe o que fazer.

Jairo Anderson é diretor de criação da Publicis Brasil