Tecno-jeca

Outro dia, me peguei me autoidentificando como uma tecno-jeca. Esse termo nem deve existir, mas foi o que encontrei para me definir enquanto pensava em como responder a uma pergunta que nem me fizeram: “O que uma engenheira mecatrônica, fundadora de uma startup, faz morando na roça?”
Em julho de 2024, mudei-me para o Sertão do Ubatumirim, uma comunidade tradicional caiçara no litoral norte de São Paulo. Meu objetivo era simples: estar próxima da natureza, com os pés no chão, em contato abundante com a água e aprendendo com as plantas professoras. Eu precisava me curar, me proteger e me cuidar. Isso me inspira profundamente.
Passei grande parte da minha vida, até 2020, planejando estratégias de ascensão social, traçando metas de carreira. Posso dizer que alcancei a maioria delas até aqui. Fundar Mães Negras do Brasil em 2023 foi a cereja de um bolo que, embora parecesse bonito, estava denso, com um recheio doce demais, algo que eu mesma não comeria. Foi necessário tempo para fazer as pazes com minha história e com a carreira que construí, muitas vezes sem a plena consciência dos atravessamentos que enfrentei para “chegar lá”.
Essa história começa em 2020, com a minha gestação e tudo que acontecia no
mundo naquele momento: pandemia, o assassinato de George Floyd, uma gravidez não planejada e um novo emprego em uma grande empresa. Coisas boas e ruins aconteciam ao mesmo tempo, e eu estava na quinta marcha, acelerando mais a cada dia. Quando finalmente parei para refletir sobre quem eu era e como viveria a maternidade, surgiram muitos questionamentos. Comecei a passar por mudanças internas, profundas e dolorosas. Revisitar a minha história, a história das minhas ancestrais e a realidade das minhas contemporâneas foi um gatilho enorme, e eu precisava agir — não só por mim, mas, sobretudo, pela minha filha.
Enquanto o termo ESG explodia no mundo corporativo, eu buscava entender como poderia fazer uma transição de carreira, conectando minhas habilidades a algo que tivesse impacto positivo no mundo. Pensei em atuar com projetos de crédito de carbono, cripto, relatórios ESG, e até permacultura. Tudo muito interessante, mas distante da minha realidade naquele momento. A maternidade negra, no entanto, continuava a me chamar, com seus desdobramentos se escancarando a cada pesquisa que eu fazia sobre o que significava ser uma mãe negra no Brasil. Não pude fugir. Era urgente colocar minhas habilidades e acessos a serviço de algo que fizesse sentido de imediato, que eu pudesse executar e testar.
Após meses de anotações, pesquisas e conversas, finalmente sentei ao computador e comecei a desenvolver a plataforma e o roadmap do produto. “Discovery, development, delivery.”
Tornei-me empreendedora sem saber exatamente o que isso significava. Meu conhecimento se limitava ao design de processos, gestão de projetos e lançamento de novos produtos. Com o tempo, entendi o que eram modelos de negócios, modelo de receita, marketing, contabilidade para empresas, branding e mais. Eu simplesmente comecei e confiei.
Em menos de dois anos, já alcançamos reconhecimento, premiações, algum faturamento, uma base de clientes surpreendente e impacto positivo comprovado. Há muito a ser feito, mas certamente estamos no caminho certo. Confiamos que o caminho se faz ao caminhar. Empreender no Brasil, especialmente sendo mulher, negra e mãe, traz muitos desafios e aprendizados. Hoje, posso dizer que encontrei em Mães Negras do Brasil uma oportunidade única de desenvolver um negócio inovador, que transformará a realidade de milhares de mães no país.
Nosso negócio é fundamentado em princípios e valores que resgatam e fortalecem nossa cultura ancestral. É por isso que firmo meus pés no chão e me cerco de natureza, para manter a consciência necessária e não me deixar levar pela pressão dos modelos tradicionais de negócios. Trata-se de uma batalha intensa para romper paradigmas já obsoletos. Tenho certeza de que estou sendo a mudança que quero ver no mundo, mesmo que o mundo ainda não esteja preparado para isso.
Seguiremos firmes.
Thais Lopes é engenheira mecatrônica, fundadora e CEO da plataforma Mães Negras do Brasil