Meu amigo Mauro Ventura tem a mania de tomar nota de tudo que acontece perto dele e pode se transformar em boas crônicas. Mas, ao contrário de outros escritores que portam um caderninho para anotar suas ideias, Mauro nunca tem onde escrever. Então, ao chegar em casa, é obrigado a traduzir um sem-número de pedaços de toalhas de botequim, guardanapos, post-its e notas fiscais rabiscadas que ele vai enfiando na bolsa e nos bolsos para não esquecer. De uns tempos para cá, com a idade chegando e a memória de curto prazo indo, resolvi ter à mão uma agenda para anotar frases e ideias. Essa cadernetinha tem um sinônimo muito aviadado que eu procuro usar sempre que possível só para mostrar meu lado mais emplumado. Canhenho. Poucas coisas falam mais sobre a bichice de um ser humano do que perguntar: “alguém viu meu canhenho?” Pois é nele que tomo notas das coisas mais interessantes que ouço. Mas a memória necessita de muito mais do que algumas poucas palavras para que eu consiga recordar o que estava querendo que fosse lembrado.

Até porque junta-se também certa dificuldade em escrever no metrô, no táxi ou no botequim. Gostaria de conseguir decifrar o que significa “mercontinunougrfungsfrtmosunvrente”. Sei que todos rimos muito com esta frase e que me despertou uma série de ideias. Mas, infelizmente, é tudo que eu me lembro. Das risadas. Que profundos pensamentos, que história maravilhosa o mundo e meus leitores perderam! O quanto eu poderia ter contribuído para a cultura e política se eu tivesse ideia do que significa “guiusljmnshtrmhusytremnfrugata!” Parei de beber há mais de um ano, mas não parei de ficar velho. De qualquer forma, essa mania de escrever o que ouço tem me ajudado em várias ocasiões. Outro dia, atendendo a um site ligado à gastronomia, que me pediu frases ditas em botequins, recorri às minhas anotações e garimpei coisas preciosas. Comecei por uma grossíssima, pois nenhum leitor é imune a uma boa sacanagem.

É a do freguês que respondeu ao garçom que tinha lhe oferecido um carpaccio como entrada. “Meu amigo, carne crua só gemendo”. Ganhou uma vaia e dois dias de gelo de sua mulher. Aliás, merecidamente. Um gaúcho me contou, mostrando que existia uma profunda poesia na antiga
(e já inexistente) grossura gaúcha. Há muito tempo, ele foi com mais três casais a uma churrascaria na cidade de Rio Grande. O garçom, após anotar o pedido de bebidas dos homens, se dirigiu às mulheres: “e as gurias, vão ficar de bico seco?” Durante muito tempo, almocei num restaurante na Avenida Almirante Barroso, no Rio, onde era atendido pelo garçom Manolo, um espanhol que era célebre pela sua absoluta falta de paciência. Uma vez, perguntado por uma senhora sobre o que seria um prato chamado “criadillas”, muito conhecido na Mancha, Espanha, tentou dar várias explicações com parábolas e circunlóquios. Ao não conseguir ser entendido, apontou o próprio saco e disse: “señora, criadilla és esto!” Outro amigo, depois de contar ao garçom que estava morto de fome e ter recebido a sugestão de comer uma “saladinha”, respondeu, quase bravo: “meu amigo, salada é comida de comida. Eu quero carne!” Em Volta Redonda há uma loja diminuta que faz a melhor empada que comi na vida, a Empa Dona. São uns dez tipos de empadas, mantidas quentes num forno à lenha.

Cheio de curiosidade, perguntei ao rapaz do balcão como ele diferenciava um sabor do outro. Ele respondeu que era simples. “Camarão tem um pontinho; camarão com catupiry, dois; calabresa, um ‘cê’; palmito, um pauzinho, tudo lógico”. Daí eu intriguei com um “S” sobre algumas delas. E ele explicou, com ar de enfado diante de minha ignorância: “simples: ‘esse’ de cebola!”. Dizem que um amigo respondeu ao garçom que lhe perguntava se gostaria de frutos do mar: “tirando salva-vidas, mergulhador e homem rã, não!” Outra do Manolo, sobre o qual já falei. Numa segunda-feira, depois do Flamengo ter perdido no domingo, aconselhou: “pede coisa fácil, que o mau humor na cozinha está terrível!” Outra amiga, médica, teve de ouvir do garçom, a quem perguntara sobre seu marido: “doutora, ainda bem que a senhora sabe o que significa código de ética: não vejo seu marido há meses”.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)