Acabei de ler uma matéria no UOL, contando a aventura de um casal de criativos de Manaus que resolveu trabalhar em “road-office”. Ou seja, mulher e marido pediram demissão das agências em que trabalhavam e passaram a viver de frilas, enquanto viajavam. Estão há cinco anos nessa vida e só precisaram dar uma interrompida por conta da pandemia. Tirando a pandemia, é uma notícia alvissareira.

Principalmente, se considerarmos que os clientes parecem bastante satisfeitos com o trabalho que eles vêm prestando. É agradavelmente curioso saber, por exemplo, que durante a temporada de Black Friday, eles tiveram de permanecer 28 dias em Ushuaia, no extremo sul da Argentina, por conta do volume de trabalho.

E passaram a cumprir a rotina de se dedicar aos jobs de segunda a sexta e fazer trilhas no fim de semana. Perfeito. O que os levou a tomar a decisão de abandonar o padrão convencional de exercer a profissão de criativos foi exatamente a falta de criatividade que o padrão convencional do ambiente de trabalho oferece. Estão certos.

As sedes das agências e suas rotinas funcionais são de uma pobreza criativa e de uma mesmice escandalosas; aliás, piores ficam quanto mais “descolados” tentam ser. Nada mais padrão do que a arquitetura e a decoração das agências tidas como up-to-date. É pura imitação. Tudo virou uma enorme paisagem artificial recheada de referências. Enjoativo. Absolutamente não-inspirador, por estar permanentemente lembrando padrões e estilos recorrentes, datados, numa impostura incompatível com o estímulo criativo. Mas o problema não é só esse.

Além da repetição visual exaustiva, temos os comportamentos não menos referenciados, não menos repetitivos e não menos exaustivos. As mesmas piadas, os mesmo termos, as mesmas atitudes, as mesmas críticas, as mesmas dúvidas, os mesmos receios, os mesmos conflitos, a mesma previsibilidade. Todos os dias, por pelo menos 12 horas, uma avassaladora tensão. Uma repetição cotidiana e emburrecedora no exercício da vida. Um verdadeiro assassinato de vocações. Trabalhar deixou de ser uma prazerosa prática do talento para se tornar um teste cruel de resistência psicológica à contradição.

Uma fábrica de neuróticos. Uma prisão sem grades, mas suficientemente estimuladora de inseguranças para que poucos se atrevam a deixá-la. O casal de Manaus se torna emblemático porque continua com muitos jobs e ganhando dinheiro suficiente para viver como escolheu viver.

O que demonstra que o sucesso do criativo não depende da conformidade com um conjunto de referências a que nos obrigam a adotar – a imperativa ambientação das agências, o “idioma” dos enturmados, os endereços a serem frequentados, a convivência influente etc.

Fica demonstrada uma absoluta obviedade: quanto mais diversificada a nossa vivência, mais excitaremos a nossa criatividade. Torço para que o advento dessa pandemia, maldito sob todos os aspectos, sirva pelo menos para acordarmos para o absurdo da “coisa certa” instituída. E comecemos a adotar a liberdade necessária para que o pensamento criativo flua sem os escaninhos das referências, que só servem para sugar a nossa energia e esgotar a nossa paciência.

Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing (stalimircom@gmail.com).