Vendendo o que jamais será entregue
Na medida em que faltam terrenos, na medida em que supostamente as pessoas querem – claro, as que têm dinheiro – morar nos melhores lugares da cidade, o chamado Jardins, aquela região que vai da Al. Santos, desce a Pamplona, pega a Estados Unidos, e sobe a Consolação, passa, neste momento, pelo último pente fino das incorporadoras, e em menos de cinco anos estará completamente desfigurada.
E assim, aquilo que é realidade hoje, o cenário maravilhoso onde corretores levam compradores desatentos que gostam de ser enganados, mostrando as maravilhas de morar, finalmente, num lugar encantador e descolado, não passa de um estelionato. Jamais entregarão os sonhos. No lugar do sonho, torres de concreto onde incautos e delirantes morarão... Depois de venderem o sonho, levam pra tomar um café no acolhedor e legendário Cristallo...
Corta para o Estadão, 9 de janeiro, caderno Metrópole, matéria quase crônica assinada por Ítalo Lo Re. “Despedida da Cristallo da Oscar Freire reúne clientes... “Era por volta de 17 horas quando a aposentada Leni Colaferri, de 71 anos, se acomodou em uma mesa de calçada da confeitaria Cristallo, quase esquina da Rua Oscar Freire com a Bela Cintra... A unidade da Cristallo da Oscar Freire, aberta por ali há 46 anos, viveu seu dia de despedida do número 914, em tarde marcada por comoção entre funcionários e frequentadores assíduos... e conclui Ítalo, “A confeitaria, assim como outros estabelecimentos vizinhos, será demolida para a construção de um residencial de alto padrão...”.
É isso, amigos. Corretores mais que necessitados – só ganham se venderem e precisam comer – vendem um paraíso onde passará a existir um inferno ainda que presumivelmente chique. Ou, no mínimo, um purgatório. Vendem o que jamais será entregue porque as encantadoras ilhas de alegria, prazer e felicidade, todas, serão despejadas e depois demolidas para a construção das tais torres...
Pessoas que compraram, como descreve Alberto Dines em seu clássico ‘Morte no paraíso - A tragédia de Stefan Zweig’. Terminar seus dias rodeado de prazeres, alegrias e felicidade, e descobrirá, tardiamente, que compraram gato por lebre, com todo respeito aos gatos que não têm nada a ver com essa história, com esse estelionato emocional...
Nota de falecimento
Faleceu no último dia 15 de janeiro de 2024, por falência generalizada dos órgãos, um dos campeões de sucesso do mercado financeiro de décadas atrás. O DOC. Queridinho das empresas e das pessoas. Morreu mais ignorado que o faquir de Kafka, sem nenhuma chance de ressuscitação. Quase chegou aos 40 anos. Desde a virada do milênio vinha revelando debilidades. Assim mesmo ganhou alguma sobrevida, mas não resistiu os ventos da modernidade, e, despediu-se. Mais uma das vítimas do tsunami tecnológico.
Criado no ano de 1985, revolucionou. Permitia, finalmente, a realização de transferências entre contas bancárias. Eliminava a necessidade do tal de depósito em cheque. Aliás, e por falar em cheque... Agora, em seu lugar, ele, todo modernoso e em vez de um C no final, um X, transmitindo velocidade e modernidade, o PIX. Ainda em 2023, primeiro semestre, revelava alguns sinais de vida: foram realizados 18,3 milhões de operações de DOC... mas, e no mesmo período, 17,6 bilhões de PIX... Dispensam-se comentários. Trata-se da maior crise estrutural da história da economia e dos negócios de todos os tempos. Assim, esqueça as crises conjunturais. São simples resfriados, que podem, no máximo, em poucos casos, virar pneumonia. O mundo velho está em seus estertores. E todas as empresas que não tiverem essa consciência e não tomarem as providências no mais que devido tempo terão o mesmo destino do... DOC. Que parte sem deixar saudades...
Somos ingratos, interesseiros, oportunistas, aproveitadores...? Lembram o que um dia nos ensinou, em 1960, o saudoso Theodore Levitt, com seu artigo monumental, ‘Marketing Myopia?’, que “não compramos produtos, compramos os serviços que os produtos prestam...”. E no dia seguinte que um novo produto preste melhor aquele mesmo serviço trocamos no ato.
Assim somos nós, os humanos, não desumanos... Queremos sempre, e para sempre, e desde que acessível, e apenas, o melhor...
Francisco Alberto Madia de Souza é consultor de marketing
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