Como se não me bastassem a mulher e os filhos a denunciarem minhas falhas de memória e a anciã mania de ser repetitivo, os editores aqui deste jornal e alguns leitores descobrem que já leram histórias nesta coluna há anos publicadas. Evidentemente fico lisonjeado por ter sido mantido na memória por cinco ou seis anos, feito nada corriqueiro nestes tempos de passagens rápidas e de rápido esquecimento.

Mas estou me antecipando ao telefonema, em cima da hora do fechamento, de uma editora, gentilíssima, mas determinada, avisando que “esta história você já contou”. Pois, então, fique a ressalva: se já contei o que contarei a seguir, me desculpe. E o que é pior, não adianta me mandar e-mail porque fugindo do vírus estou homiziado na fazenda de minha nora, no interior de Minas, que civilizadamente tem a internet preguiçosa, que me mantém razoavelmente informado, mas não enche o saco.

Além do que tenho netas que precisam me mostrar porquinhos comendo, bezerros mamando e siriemas passeando orgulhosas pelo jardim. E mais, tenho de ir à cidade comprar um mouse, pois o antigo foi roído pelo filhote de perdigueiro, mais novo integrante da família. Assim não haverá tempo de escrever outra crônica.

Fica como revival, ou reapresentação para leitores mais antigos. E prova viva de que cumpri a promessa da semana passada e não falei de pandemias. Vamos, portanto à história. É uma conversa numa viagem Rio/São Paulo com o então presidente da Academia Brasileira de Letras, Arnaldo Niskier, e Mariza Raja Gabaglia. Embora pareça incrível, o vetusto intelectual e o publicitário porra louca se gostavam e se curtiam. Evidentemente cada um achando o outro meio louco, à sua maneira. Eu estou usando o passado neste descrição, mas só vale para a Mariza, pois Arnaldo continua vivo – graças a Deus – e bem vivo. E meu amigo. Ídolo, se me permitem. Mas qual era história, Lula? A seguinte. Estávamos os três na ponte aérea. O avião ainda era o Electra e a viagem muito mais requintada e romântica do que agora. Que não serve nada. Nem a própria viagem. Para de chorar, Lula, e continua a história! Vamos lá. Desculpem. Havia uísque, vinhos e canapés, com direito a fumar e reclinar a poltrona até um ângulo convidativo ao sono.

Como bons e civilizados viajantes, ao nos encontrarmos no aeroporto fomos até o bar para nos preparar para o voo com dignidade, bebendo numerosas taças de vinho. Assim, sem nos esgoelarmos em celulares ou perdermos a paciência na fila, embarcamos felizes, para continuar a beber no avião. Poucos minutos depois da decolagem, mais cansado, Arnaldo acabou ferrando no sono, entre Mariza e eu, cada um numa extremidade do banco.

Tivemos de continuar a conversa meio no grito, para vencer o barulho das quatro turbinas do Electra e do ronco do Arnaldo, numa disputa feroz. A certa altura da discussão, Mariza afirma que eu não passava de um intelectualzinho metido a besta. Como exemplo, afirmou que eu jamais teria lido um de seus livros. “O quueeeeeê?! – respondi – Sua ingrata! Eu li Amor Bandido e Milho pras Galinhas, Mariquinha!”

A esta altura, Arnaldo abre o olho e entra na conversa: “Lula, já que você lê qualquer merda, deixa eu te dar meu último livro”. E ali mesmo, sob o silêncio respeitoso de todo avião, me autografou um profundo estudo de sua autoria sobre os problemas de educação no Brasil. Eu escrevi respeitoso? Pois sabia o que estava escrevendo. O livro tem a seriedade, a compostura e a qualidade intelectual do grande Arnaldo Niskier.

Mas o respeito nasce da capacidade incrível que ele tem de rir de si mesmo e dos outros, ou seja, ele sabe entender com verdadeira ternura o ser humano, não o levando demasiadamente a sério para não perder o amor.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor
(lulavieira.luvi@gmail.com
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