Os riscos de os clubes se tornarem a Netflix do futebol

Se uma história pode ser contada por pelo menos dois pontos de vista, a disputa judicial entre Flamengo e Globo para as transmissões do Campeonato Carioca deve render muitos outros ângulos e nuances. A começar pelo debate sobre o futuro do futebol brasileiro e seus modelos de receita – até então, majoritariamente baseados em acordos com emissoras de TV.

Na última quarta-feira (1º), o clube rubro-negro transmitiu sua primeira partida independente na FlaTV, seu canal no Twitter, Facebook e YouTube. A vitória por 2×0 contra o Boavista, no Maracanã, teve audiência de 2,1 milhões de pessoas simultâneas, uma das 10 maiores lives do YouTube no mundo.

Jogador Pedro abriu o placar para o Flamengo em partida contra o Boavista na primeira live do rubro-negro em seus perfis sociais

Com a transmissão, algo que a Globo chamou de quebra de acordo de exclusividade, o canal anunciou na última quinta-feira (2) a rescisão do contrato com os clubes do torneio e com a Federação de Futebol do Rio de Janeiro (Ferj). O acordo tinha duração até 2024. Na prática, o canal não teria mais obrigação de transmitir as partidas deste ano, enquanto os clubes ficariam livres para comercializar ou transmitir suas partidas por conta própria. O Vasco foi um dos que se adiantaram, e na última quinta-feira (2) trouxe em seu canal no Youtube a live da partida contra o Madureira, ainda que sem os mesmos parâmetros de qualidade e engajamento que o rival rubro-negro. O jogo teve pico de 465 mil torcedores simultâneos.

Uma questão judicial no último domingo (5), no entanto, pode atrapalhar as estratégias dos clubes em sua abordagem over the top (OTT), como a Netflix e DAZN, por exemplo. Uma liminar da Ferj contra a Globo colocava em dúvida como será a transmissão da final do Carioca nesta quarta-feira (8), uma vez que a medida obrigava a emissora a transmitir, ainda que com o contrato rescindido, a decisão entre Fluminense e Flamengo. A Globo, por sua vez, recorreu com sucesso da obrigatoriedade da transmissão. Segundo informações do UOL Esporte, a Rede TV! estaria interessada em transmitir a partida.

Mercado e formatos

Enquanto isso, o cenário do Campeonato Carioca a partir de 2021 fica em aberto do ponto de vista de transmissão. E os clubes, por sua vez, terão pouco mais de seis meses para se reestruturar e encontrar novas maneiras de remuneração e transmissão de suas partidas. Para Gustavo Oliveira, vice-presidente de comunicação e marketing do Flamengo, a Globo segue como maior parceira comercial do clube, e o relacionamento deve continuar no futuro, mas o mercado de transmissão está em constante transformação e é preciso de planejamento.

“A Globo, apesar de importante, não é mais a única parceira na área de transmissão. O leque de parcerias vai se abrir muito e os clubes terão a oportunidade de fechar negócios com empresas diferentes em cada área específica”.

Emerson Santos narrou a partida do Flamengo contra o Boavista e fez merchan de patrocinadores como Brahma e MRV

Apesar dos investimentos no digital, o rubro-negro ainda deve ajustar alguns formatos comerciais. No último domingo (5), durante partida contra o Volta Redonda, o Flamengo testou um novo modelo de transmissão, mediante o pagamento de R$ 10 pelo conteúdo ao vivo na FlaTV. O acesso seria via plataforma MyCujoo, mas houve sobrecarga no servidor e o clube precisou abrir o sinal para toda a torcida. Nesta segunda-feira (6), um comunicado oficial tentou esclarecer a situação inédita.  Foram mais de 100 mil pessoas que fizeram a compra para ter acesso a partida.

“Não foi possível atender a enorme demanda que se formou nas horas próximas ao jogo, no que tange às pessoas localizadas no Brasil. Mesmo com o problema ocorrido – que resultou em uma redução significativa da possível receita para o Flamengo -, nosso clube arrecadou pouco mais de 1 milhão de reais com a venda, mostrando que este é um modelo importante para os clubes brasileiros”.

Ainda em nota, o rubro-negro esclareceu que fará a devolução do valor para os torcedores que assim quiserem. O problema ganhou as redes sociais e diversos players do mercado comentaram a situação. Em seu perfil pessoal no Twitter, Ricardo Fort, vp global de patrocínios esportivos da Coca-Cola, destacou que “Transmissão de futebol não é coisa fácil (mesmo para uma empresa com experiência e qualidade como o @MyCujoo). A ideia de dinheiro fácil eliminando a TV é ótima no papel, mas colide com as muitas dificuldades operacionais de produzir, vender e entregado OTT de qualidade”.

O posicionamento de Fort é compactuado por Ivan Martinho, professor de marketing esportivo da ESPM. O especialista defende que há vantagens e desvantagens de assumir papel de plataforma de mídia ou então, manter contratos para terceirizar a transmissão, como no caso da Globo.

“Quando você vende os direitos para uma emissora, o clube recebe um valor anual. No caso do Flamengo, são cerca de R$ 200 milhões, incluindo o pay per view. Na hipótese de o clube ir direto para o consumidor, sem uma emissora intermediária, ele precisa criar um produto, ter um estrutura de transmissão e conteúdo, e isso não é expertise de nenhum clube brasileiro. Não vejo nenhum time com potencial, de forma abrupta e rápida, de se transformar em uma Netflix, uma DAZN, para oferecer conteúdo ao vivo e on demand em curto prazo”.

Em outra publicação no Twitter, ainda sobre o problema com a transmissão do Flamengo, Fort reforça que “OTT é necessário, mas não garantirá o sucesso comercial de nenhum clube no Brasil na próxima década”.

Já na visão de Oliveira, do Flamengo, a autonomia e liberdade de escolha vindas com a MP 984 ampliarão parcerias comerciais. “Será ótimo para todos os clubes, que ampliarão seus possíveis parceiros, com mais gente trabalhando no segmento de conteúdo esportivo, e, principalmente, para os torcedores, com mais opções de escolhas”.

Para o executivo, o conteúdo passa a ser ainda mais relevante para o esporte e será o fator decisivo nesse processo. “Esta multiplicidade de novos players certamente vai fazer crescer o bolo para todos, independentemente do tamanho de suas torcidas. Os clubes, o mercado de trabalho relacionado ao conteúdo e promoções e, principalmente, os torcedores ganharão muito com isto”.

Martinho, por sua vez, chama a atenção para as peculiaridades de cada clube, reforçando que as realidades são muito diferentes. “O Flamengo foi pioneiro, tinha a seu favor a novidade de transmitir jogo ao vivo na pandemia, sem contar que o clube está vivendo seu melhor momento esportivo. Mas essa condição e realidade não são as mesmas de outros clubes”.

O especialista reforça ainda que o “grito de liberdade dos clubes em relação aos contratos com emissoras precisa ser muito bem calculado. “Construir audiência na internet é difícil, mas monetizar essa audiência é mais difícil ainda. Como criar dinheiro para pagar esse conteúdo e superar os R$ 200 milhões que o Flamengo ganhava com a Globo? Se criar outro jeito, é preciso faturar e ter lucro, caso contrário, é um tiro no pé. Esse grito de independência precisa ser muito bem calculado”.