Papo de botequim

Pergunto ao garçom como está a vida. Ele coça a cabeça, olha o salão meia bomba e responde: “Uma merda. Além da crise, o senhor não está bebendo”. Jamais coloquei a questão desse meu tempo como abstêmio sob a ótica da economia. Mas, enfim, prometo que mais algum tempo voltarei a contribuir para a dinâmica econômica de meu estado, consumindo com o devido entusiasmo destilados e fermentados, ainda que minha mulher insista em dizer que estou mais disposto, mais inteligente e mais elegante. E menos chato. Posso até me sentir lisonjeado, mas há que se levar em conta a minha responsabilidade como cidadão participante.

Quantos empregos diretos e indiretos essa sobriedade está custando? Como posso encarar um produtor rural sem culpa, sabendo que não estou contribuindo para que sua produção de uvas ou de cana se escoe tanto na roda das finanças como literalmente nos mictórios? Tirando o aspecto da saúde, a única vantagem de ficar sem beber é não ter medo da Lei Seca. Emboramente eu tenha uma carteirada infalível: meus cabelos brancos. Jamais fui parado numa blitz. Acham que tenho cara respeitável. É bem verdade que nunca dirijo depois de beber. Talvez porque raramente dirijo antes de beber. De todos os defeitos que o Rio de Janeiro tem, falta de táxis não é um deles. Do jeito que está atualmente, os motoristas não vão lhe pegar na porta do boteco. Buscam você na sua mesa e são capazes de lhe levar no colo até o carro. Logo, pelo menos no Rio, beber e dirigir é uma burrice.

Já que estamos falando de bebedeiras, deixa eu contar as aventuras de dois bebuns históricos: Vinícius de Morais e Antonio “Menino Grande” Maria. Quando eles enchiam a cara, o que significa mais ou menos sempre, gostavam de dar carona aos vira-latas que encontravam nas ruas. Sim, vira-latas caninos, esses bichos que surgem do nada e, por um afago ou resto de comida, nos adotam nas noites vadias. Vina e Maria andavam de Cadillac conversível, modelo supremo do sonho de consumo da época. Dizia Vinícius, explicando a mordomia dedicada aos bichos que incluía, além do passeio (que, diga-se entre parênteses, os cães dispensariam), bons lanches de ossos fresquinhos conseguidos em restaurantes amigos. Uma festa. Para explicar sua paixão por vira-latas Vinícius dizia que não existe solidão maior do que falta de amor. “E os vira-latas amam”, sentenciava. E ele entendia disso, como prova sua vastíssima obra. Vamos em frente. Numa dessas madrugadas, quase amanhecendo, Vinícius e Maria avistam um bando de velhinhos na praia fazendo exercícios, chefiados por um rapagão musculoso. De copo na mão ficaram observando os movimentos. Até que Vinícius diz: “Maria, vamos fazer um pacto?”. “Claro, peça o que quiser”. “De hoje em diante, não vamos fazer nenhum movimento desnecessário”.

Sobre Vinícius, Carlinhos Lyra contou que um dia o poetinha lhe mostrou a letra de um momento da peça Pobre Menina Rica. Era quando o mendigo acorda. “Vamos carioca, sai do teu sono devagar/ o dia já vem vindo e o sol já vai raiar/ São Jorge teu padrinho/ te dê cana pra tomar/ Xangô teu pai/ te dê muitas mulheres para amar…” Em seguida o mendigo vê numa cobertura a pobre menina rica e se apaixona imediatamente. “O meu amor sozinho/ é assim
como um jardim sem flor/ Eu só queria poder dizer a ela/ como é triste se sentir saudade/ É que eu gosto tanto dela/ Que é capaz dela gostar de mim…”. Lyra acha lindo.

Daí Vinícius continua, pois a menina lá da sua cobertura responde ao mendiguinho: “Não há amor sozinho/ É juntinho que ele fica bom/ Eu queria dar-lhe todo meu carinho…”. E termina: “Amor que eu tanto procurei/ Ah quem me dera que eu pudesse ser/ A tua primavera/ E depois morrer”. Daí Carlinhos não aguenta. “Porra Vinícius! Você acha que uma menina rica, morando numa cobertura, se apaixone por um mendigo? Vinícius fica indignado com a falta de sensibilidade do parceiro: “Por que não, Carlinhos? Era primavera!” Pois foi Vinícius, ele mesmo, que foi mandado embora depois que o Itamarati recebeu um bilhete do então presidente Costa e Silva: “Demitam este vagabundo”. Já que estou citando, encerro com uma frase de Carlos Drummond de Andrade sobre Vinícius: “Entre nós, poetas, ele foi o único que viveu como poeta”.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)