Eduardo Kobra: 'Pintar para mim é uma forma de me comunicar'
Em entrevista exclusiva ao PROPMARK, artista diz que a sua arte movimenta ideias, emoções e sentimentos
Ícone da street art no mundo, Eduardo Kobra é aquele brasileiro que dá orgulho. Seu murais gigantescos estão espalhados em nada menos do que 50 países. Os painéis de Kobra falam de história, memória e de personagens que lutaram pela paz.
“Acima de tudo, eu venho tratando de temas que eu vivi durante a minha infância, que eu vejo hoje, que me incomodam, que me deixam feliz”, afirma o paulistano.
Para além da parte financeira, ele considera que a sua arte movimenta ideias, emoções e sentimentos, e chega a lugares inusitados e simples, mudando a cara das cidades, onde pessoas das mais diversas classes sociais podem ter acesso.
Qual a sua ligação com o mercado de publicidade e marketing?
Na história da arte observo que muitos artistas vieram dessa escola de publicidade e marketing, e tiveram êxito em suas trajetórias, transformando rótulos em verdadeiras obras de arte, produtos em pinturas. Então, acredito que exista um diálogo importante entre esses universos, mas também uma linha muito tênue que separa esses mundos, ao mesmo tempo que em alguns momentos os unifica. Existem artistas, ilustradores e designers fantásticos que migraram para o mundo das galerias, museus, assim como outros que fizeram essa transição e continuam mantendo a produção do trabalho de uma forma contínua e séria. Tenho algum tipo de relação dentro de parâmetros.
Já desenvolveu projetos sob encomenda para marcas?
Eu acho que é importante a gente saber dividir. Existe um mito na arte de que artistas que acabam realizando produtos ou fazendo associações com marcas não são bem-vistos no mundo da arte. Enfim, acho que isso se mostra um argumento muito sensível, porque existem, sim, artistas que perdem a mão e acabam colocando suas obras de uma forma até mesmo pejorativa, sem nenhum tipo de controle ou cuidado, transformando o trabalho em verdadeiros produtos. Mas tem artistas muito bem-sucedidos, como Salvador Dalí, Andy Warhol, tantos outros, que já realizaram trabalho em rótulos, produtos e marcas, e continuaram tendo a sua trajetória respeitadíssima. Eu, sinceramente, tenho um caminho, e quando ele encontra a publicidade ou o marketing, quando essas linhas se cruzam, e o meu trabalho permanece íntegro, meus princípios e valores respeitados, esse diálogo acontece. E difícil citar aqui quais são as marcas, mas eu já me relacionei com algumas marcas, sim, que tiveram esse olhar cuidadoso sobre a minha trajetória.
Como é ser uma referência na arte popular, ícone de inspiração?
Na realidade, eu particularmente não me vejo assim. Sou uma pessoa bem contida em relação ao meu trabalho, sou muito pé no chão. Resumindo, eu mantenho muito firme as minhas convicções em relação à integridade no que diz respeito à evolução. Não tenho nenhuma conexão com a parte relacionada a glamour ou algo desse tipo. Eu acho, sim, muito consistente quando se tem um trabalho ao longo de muitos anos pela persistência, resiliência, resistência, força de vontade, dedicação e empenho. Eu me considero mesmo um trabalhador na arte. Acredito que todos os dias tenho a obrigação de evoluir, de me dedicar, a obrigação de fazer algo melhor do que o dia de ontem. Acho que só dessa forma é possível construir uma trajetória, uma história e permanecer feliz. Eu preciso me sentir bem, feliz com aquilo com o que estou fazendo. Eu sou muito crítico com o meu trabalho, sou daquele tipo que perde noites de sono pensando nos projetos. Cada projeto é uma dedicação de vida para mim, seja ele gratuito ou valendo milhões. Para mim, não há diferença, também não há diferença de um trabalho feito num lugar simples, numa comunidade ou num lugar nobre. Em todos os trabalhos eu me dedico integralmente.
Como você aplica a criatividade no seu dia a dia?
Essa possibilidade de pensar algo inusitado, de tentar encontrar uma maneira de fazer, de pensar uma forma diferente de chegar a um resultado, de fazer essa imersão, acho que a questão é se divertir, é interna. É um incômodo, algo que me perturba, é uma necessidade, assim como o ar que eu respiro, a comida que eu como, o meu filho que está comigo, a minha família. Criatividade para mim é isso, é vencer a cada dia, transformar os dias, tentar trazer algo novo, reflexões, pensamentos, exteriorizar aquilo que está dentro de mim de alguma maneira. E ter objetivos, ter meta, uma visão, querer chegar a algum lugar também. E tudo isso vai se desdobrando e eu vou transformando isso de pensamento a desenho, de desenho a imagem, de imagem a mural.
Que método desenvolveu para criar as suas peças?
O método da paixão, do amor, da dedicação. É aquilo que eu sou, o que penso, o que vejo, no que acredito e aquilo o que estou aprendendo. O meu trabalho é a evolução daquilo que eu sou como ser humano. Conforme eu vou aprendendo, meu trabalho vai evoluindo. Conforme vou me desenvolvendo, meu trabalho vai crescendo. Conforme vou aprendendo a amar o próximo, a respeitar o próximo, a preservar o planeta, meu trabalho vai evoluindo. Eu não tenho exatamente uma fonte, mas eu tenho princípios.
Na história da arte eu percebo que existe muita coisa que não se conecta comigo e eu não preciso fazer isso para agradar os outros. Não preciso usar drogas, beber ou trair minha mulher. Eu posso fazer diferente, ter fé em Deus. Eu posso não beber, assim como eu não bebo há mais de 12 anos. Eu posso pensar diferente, posso simplesmente ser aquilo que sou e transmitir isso através das minhas obras. As minhas obras são um reflexo desse aprendizado. Não me julgo melhor do que ninguém, muito pelo contrário, acho que cada um de nós está num processo individual de autoconhecimento.
Onde busca inspiração para o seu trabalho?
A cidade, a rua, a periferia, a comunidade, as tretas, a violência urbana, a poluição. É assim que eu me desenvolvi, cada célula do meu corpo está conectada a isso de alguma forma. Foi assim que eu me desenvolvi, através de ofensas, repressão, palavras contrárias. Foi assim que eu encontrei o meu caminho e percebi que poderia fazer algo diferente, de certa forma transformar o meu mundo e a partir do meu mundo colocar mensagens positivas nos lugares. É assim que eu penso o meu trabalho, o ambiente urbano, as cidades. A cidade está contida em mim e isso se reflete no meu trabalho. Eu falo de história, memória, de personagens que lutaram pela paz. Mas, acima de tudo, eu venho tratando de temas que eu vivi durante a minha infância, que eu vejo hoje, que me incomodam, que me deixam feliz. Pintar, para mim, é uma forma de me comunicar.
Quais os desafios de produzir megapainéis?
Eu já comecei na rua. Vale comentar que eu não comecei pintando pequeno, já comecei nos painéis, com esse desafio dos materiais, das escadas, de estar na rua no frio, na chuva, no calor, na neve, seja lá o que for. Com as dificuldades de segurança também, altura, os perigos. E os desafios das superfícies, porque algumas paredes têm muitas intervenções de janelas, portas, os formatos das paredes às vezes não correspondem à arte que eu quero fazer. As viagens, os hotéis, a comida, estar longe da família, ou seja, tem milhares de dificuldades de estar nas ruas. Mas tem a grande satisfação de poder ver o resultado das produções, do esforço, dos desafios. É isso que continua me movendo.
Tem uma equipe que te ajuda na pintura dos murais?
Eu optei por um time bem pequeno. Na realidade eu tenho algumas parcerias em partes mais burocráticas, porque eu acabo trabalhando em diversos países e isso requer uma documentação de segurança de trabalho, advogados, parte de divulgação de assessoria. Eu costumo dizer que a parte da pintura é o mais fácil, chegar até ela é o mais difícil. Mas eu sou um cara que estou totalmente empenhado na criação 100%. Eu amo fazer isso, amo pintar. Mas é claro que, dependendo das dimensões, eu sempre tenho dois profissionais comigo, que são o Agnaldo e o Marcos. Eu acabei criando um projeto chamado Envolva-se, em que eu dou oportunidades para pessoas de várias partes do mundo e quando eu estou nesses países acabo chamando-as para participarem dos projetos e ter essa troca de informações. Isso para mim também está sendo bastante produtivo.
O que acha do trabalho colaborativo? Funciona no seu caso?
Acho que tudo faz parte, nós somos todos interdependentes e interconectados. A gente não sabe tudo, é importante se conectar com pessoas que têm informação.
Eu preciso muitas vezes estar ligado a historiadores, pesquisadores, porque eu gosto de entender a história dos lugares e países onde estou. A questão da tecnologia também, da utilização de novos materiais, novos equipamentos. Eu acho isso superimportante. É como uma peça de quebra-cabeças, a peça que muitas vezes falta na gente e pode acrescentar com
a informação de alguém. Eu pesquiso muita coisa da história do passado. Às vezes, algo que foi criado na arte egípcia acaba servindo de referência para o que eu
estou fazendo hoje. Às vezes, o olhar para trás também nos leva para o futuro.
Sua arte abriu caminho para outros artistas? Ou vice-versa?
É um processo interessante, porque eu tive pouquíssimas oportunidades. Os meus pares me excluíram durante o início da minha trajetória, talvez por desconhecerem a origem do meu trabalho. Mas hoje eu acho que as portas estão abertas, o muro que existia de divisão entre os museus, as galerias e as universidades, as ruas, a comunidade, a favela, os artistas que estão nos lugares, países mais simples, todos estão conectados. Não há mais diferença nesse aspecto. Um segue inspirando o outro. A arte é infinita, a gente sempre vai ver uma forma diferente de pensar, de criar, cada artista tem seu mundo, seu universo. É interessante quando a gente começa a aprender sobre a história da arte, os artistas, por que fizeram aquilo e como funcionou, qual é a conexão da arte que eles fazem com a vida que tiveram ou pretendem ter. Acho que essa é a beleza da arte, nos tornar todos conectados e aprendizes um dos outros.
Em quais ruas de cidades brasileiras a sua arte está exposta? E em quais outros países?
Vale a pena comentar que o meu trabalho, em alguns aspectos para que ele aconteça, é muito similar a uma peça de teatro. Eu faço a criação, tenho a ideia, o conceito, a mensagem, aquilo que eu quero desenvolver, e algumas empresas se conectam a essa proposta, que muitas vezes fala de proteção do meio ambiente, dos animais, dos mananciais, florestas, povos indígenas, questões de racismo, de violência. Enfim, quando existe essa conexão funciona muito bem porque a empresa pode patrocinar isso, como já aconteceu inúmeras vezes. A minha arte continua completamente íntegra. A gente mantém a criação original e a marca consegue aproveitar o fato de estar entregando algo para a cidade, estar participando de um painel que muitas vezes está numa avenida, num local relevante da cidade. Temos toda uma repercussão midiática e isso acaba sendo bastante importante para todos os lados. E no que diz respeito às cidades, eu tenho murais em muitas capitais, cidades do interior e cerca de 50 países. Vale a pena comentar que nos Estados Unidos são 50 murais, sendo 20 deles em Nova York. Enfim, eu acho que a cada dia mais as portas vão se abrindo para esse tipo de trabalho e acho que a street art, de alguma forma, já marcou essa geração, assim como outros movimentos de arte marcaram outras épocas.
Quando e como a arte de rua começou a ser mais valorizada, e qual é a importância dela para a economia criativa no Brasil?
Hoje eu sou privilegiado de ter um dos trabalhos mais publicados em livros didáticos, tenho circulado por universidades realizando palestras, tive a oportunidade de ter dois murais no Guinness Book. Nada disso eu busquei, nada disso eu esperava. Aconteceu de forma orgânica, natural, espontânea mesmo. Acho que uma resposta simples para a sua pergunta é o retorno que eu tenho todos os dias, meninos e meninas nas comunidades, nos lugares mais simples, carentes, voltando a sonhar, a ter esperança, pensando que é possível através da arte abrir portas e fronteiras. A possibilidade que a arte me deu, vindo de uma origem simples, de certa forma tem movimentado mentes, corações e emoções de muitas pessoas. O feedback que eu tenho pelos lugares que passo é relacionado a esse universo. Hoje eu tenho feito obras para 12 diferentes países, porque todas as obras que eu tenho em mural, tenho original em tela, e acabo distribuindo para galerias ao redor do mundo. Comecei esse movimento embrionário, fui um dos precursores no Brasil, um movimento que ainda era novo no mundo, e hoje a gente vê esse crescimento estrondoso da street art no planeta, movimentando muita coisa. Não só a parte financeira, mas as ideias, as emoções, os sentimentos, mudando a cara das cidades, levando arte para os lugares mais inusitados e simples, onde pessoas das mais diversas classes sociais podem ter acesso. E com o meu instituto, o Instituto Kobra, eu quero amplificar isso e dar oportunidades para meninos e meninas.