Piranha na moviola
Estou livre da porra da história da minha cliente morta. E nua. Bem, para falar a verdade pedi demissão da carreira de escritor de mistério. Não por incapacidade de criar mistérios. Mas de resolvê-los.
Escrever em frases curtas eu sei. Sabe como é. Estilo Dashiel Hammet: palavras secas, duras, espocando como tiros. Verbos e substantivos. Raros adjetivos.
Nenhum gerúndio. Isso dá ritmo ao texto. Mas eu não estou seguro que dê qualidade.
Dizia um amigo meu que a diferença entre um escritor de verdade e um iniciante é a capacidade de escrever orações subordinadas. Também acho.
Talvez concordasse mais ainda se soubesse o que é uma oração subordinada. Sou assim. Honesto. Ignorante, mas verdadeiro. Estou voltando para as historinhas sobre propaganda.
Avisem aos que me abandonaram. Chamem de volta os que desistiram de mim enquanto fiquei inventando casos policiais.
O cronista de vocês está aqui de novo. Tem alguém ainda me lendo? Você não vale, mamãe. É pouco.
Pouco, mas pelo menos sincero. Pena (nesse caso) é que mãe só tem uma. Então, voltemos aos casos.
Quem me contou esse foi o José Freire, antigo diretor de comerciais e atual empresário de propaganda. Escuta só. Estamos na década de 1980.
Na produtora do Zé Pinto, onde o Freire trabalhava, foi marcada uma apresentação na moviola para as 8 da manhã de um sábado.
Tremendo comercial. Superprodução caríssima, complicada, cheia de sacanagens. Uma reprovação acabaria com a lucratividade da produtora por uns bons meses.
Além do que seria um tremendo desprestígio, já que todo mundo sabia do empreendimento, devidamente badalado nas colunas especializadas.
Havia um certo receio no ar. Não que o filme estivesse ruim, nada disso, mas tinha uns detalhes muito sutis e o cliente não era o que podemos chamar de uma pessoa sensível.
Sendo claro, havia um cagaço generalizado. Vai daí que, às 8 da manhã, chega o cliente.
Todo amarfanhado, com cara de ressaca e acompanhado da mais esplendorosa piranha.
Piranha-piranha, daquelas de botinha, meia arrastão, microssaia de couro e peitão saindo do top. Um tesão. Mas puta. Tão puta quanto se pode ser definitivamente puta.
O cliente entrou na sala, sentou, arrotou e mandou passar “a porra do filme”.
O clima perfeito pra dar merda. E não deu outra coisa. O cara detonou o filme. Detonou detonando: aquela reprovação sem volta.
Zé Pinto queria se suicidar. Freire começou a fazer as contas do quanto custaria começar tudo de novo.
O montador cogitou enfiar o dedo nas engrenagens da moviola, para se imolar em nome da propaganda. Vai daí que a puta reage. E fala que adorou.
Aponta as qualidades de produção, da direção, da luz e dos movimentos de câmera.
Fala do ritmo da edição, comenta o trabalho dos atores. E entra nos detalhes técnicos para justificar seu entusiasmo.
O cliente ouve, ouve e acaba concordando com os argumentos. No fim aprova, dá os parabéns e se declara satisfeito com o trabalho.
A pátria, mais uma vez, salvou-se na última hora. Todo mundo ficou feliz. Menos o Freire.
Naquele momento, dentro de sua alma, nasceu a vontade de mudar de ramo.
Tudo bem que é uma profissão arriscada. Mas e quando não houvesse uma puta que entendesse de propaganda por perto?
Lula Vieira é sócio da Mesa Consultoria