Se o olhar for pelo viés econômico, realizar campanhas para organizações sem fins lucrativos realmente não remunera agências, nem paga suas contas. Mas será que a propaganda não é uma atividade para fomentar a responsabilidade social? E estimular as marcas que atendem e envolvê-las em ações capazes de mobilizar a sociedade? 

O Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions concentra grande volume de inscrições com característica pro-bono. A busca por ideias capazes de gerar mudanças é que norteia a essência desse tipo de comunicação que ganha prêmios e provoca engajamento. Quando são ONGs, agências colocam equipes a serviço desses projetos e veículos disponibilizam espaços nas suas grades comerciais para viralizar esse tipo de conteúdo. O Grand Prix for Good premia ações com esse perfil e este ano foi destinado à campanha Blink to speak, criação da TBWA da Índia para chamar a atenção da esclerose lateral amiotrófica.

Pelo conjunto da obra, os irmãos Piyush Pandey e Prasoon Pandey, com longa carreira na Ogilvy de Mumbai, foram distinguidos com o Saint Mark Lion por realizarem campanhas de apelo social. Aliás, a Ogilvy dessa cidade da Índia ganhou o GP de Creative & Effectiveness com o trabalho Savlon healthy chalk sticks. Como há o costume na Índia de se comer com as mãos, mas com baixo índice de lavá-las antes das refeições, a ideia da marca da Savlon foi misturar à fórmula do giz de argila e ardósia um pouco de granulado de sabão. O resultado é que para limpar o giz, automaticamente higienizavam as mãos. Nos anos 1960, a Unilever fez uma grande campanha com o sabonete Lifebuoy na Índia que ajudou a diminuir o índice de doenças e mortes por falta de lavar as mãos.

O projeto The refugee nation, criação da Ogilvy de Nova York, que obteve 18 Leões em 2017 e o Grand Prix for Good, ganhou Leão de Prata na competição Creative & Efectiveness este ano. A Anistia Internacional queria chamar a atenção para o problema da intolerância com refugiados de guerra, por problemas ideológicos e econômicos. Eles competiram por meio do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados).

Um dos trabalhos de maior repercussão e que ganhou o GP de Design foi Trash Isles, criação da AMVBBDO, de Londres, para a Fundação Plastic Oceans. Trouxe à luz o problema da concentração de artigos de plástico, principalmente garrafas pet, no Oceano Pacífico. O volume do material é equivalente a duas vezes a extensão territorial da França. O tamanho dessa ilha mereceu na campanha uma petição online para a ONU reconhecê-la como um novo país do planeta.

No ano passado o volume de inscrições para ONGs mereceu críticas. Em 2018, elas permanecem em alta mesmo com o direcionamento do festival para áreas específicas. Se antes o recurso para exibir criatividade era o que se convencionou chamar de publicidade fantasma, mais tarde definida como exercício autoral, faz mais sentido realizar projetos para organizações envolvidas em questões de responsabilidade.

“Uma das maiores inspirações em se trabalhar com a comunicação de produtos de saúde é estar mais perto da possibilidade de influenciar as decisões e mudanças na qualidade de vida em geral. Do ponto de vista pro-bono, um exemplo claro disso é a participação das Nações Unidas na escolha e entrega do Grand Prix for Good. Na indústria de consumo é o envolvimento de grandes marcas e laboratórios se unindo para aprovar novas leis, mudar leis antigas ou simplesmente ajudando a criar conhecimento e esclarecimento em relação a discutir condições de saúde. Discutimos muito esse valor durante as sessões do Pharma Lions: o uso da criatividade para ajudar grandes marcas em sua missão de transformar a vida das pessoas para melhor”, explicou Renata Florio, diretora de criação da Ogilvy Health Nova York, que representou os Estados Unidos no júri da área Pharma Lions.

Gustavo Bastos, sócio e diretor-geral de criação da Onzevinteum, do Rio de Janeiro, fala que esse tipo de atitude está no DNA da propaganda. Ele lembrou que John Hegarty, da BBH de Londres, conduziu um painel no Cannes Lions deste ano sobre o assunto. “No caso específico das agências, investir em ações de responsabilidade social e colocar seus talentos para trabalhar com este viés traz um ambiente melhor de trabalho, orgulho na equipe e cria uma cultura positiva na agência. Não estamos falando aqui de campanhas para ganhar prêmios, mas de realizações verdadeiras que trazem atenção a certos assuntos, contribuição a certas causas e colocam em discussão visões sociais diferentes”, destacou Bastos.

A propaganda é uma ferramenta social. A expressão é de Felipe Luchi, sócio e CCO da Lew’LaraTBWA, que considera que as marcas devem ser porta-vozes de questões importantes para a sociedade. “Produtos são criados para ajudar as pessoas nas questões de seu dia a dia e só se faz isso estando atento às demandas e prioridades do tempo em que vivemos. Cabe, sim, às marcas ajudar a disseminar valores, promover um entendimento melhor sobre os limites dos recursos naturais e incentivar uma sociedade mais justa. Propaganda e marca viraram um corpo só. E se o discurso e a prática sobre responsabilidade social vendem mais é porque as pessoas escolheram comprar produtos que, como elas, querem construir um mundo melhor. Cannes, pela sua tradição, importância e efervescência, é ao mesmo tempo exemplo e motor de transformação. A indústria vai para Cannes para ver aquilo que já é bem feito ser premiado e, também, para entender melhor para onde todos nós vamos como negócio. Está claro que o consumidor procura autenticidade e honestidade na hora de escolher um produto e Cannes tende a premiar melhor as ideias que souberam como traduzir isso em campanhas”, observa Luchi.

A questão LGBT foi o tema da campanha True Colors, criada pela Propeg para o Grupo Gay da Bahia. O comercial ganhou o único Leão de prata do Brasil da área Film no Cannes Lions deste ano. A produção do emocionante comercial, que mostra um menino criado por pais gays, foi da Vapt Filmes com direção de Rafael Damy. Vitor Barros, vice-presidente de atendimento e gestão da agência, explica.

“A propaganda tem uma grande responsabilidade sobre o conteúdo que leva para a mídia. Afinal, ali devem conter as verdades sobre os anunciantes que serão vistas por milhares de pessoas. Quando falamos de causas e projetos sociais esta responsabilidade dobra, porque é preciso impactar e criar uma corrente de massificação da mensagem. A Propeg sempre foi parceira de causas em que acreditamos que podemos fazer a diferença, levando a ideia central para o maior número de pessoas. Premiações como Cannes mostram como a ideia é forte e impactam pessoas ao redor do mundo. Ou seja, conseguimos espalhar o posicionamento do cliente sobre uma causa tão importante como a identidade de gênero”.

A Ogilvy Brasil trouxe à tona o tema da corrupção com a campanha Rick Brasil, criada para a revista Forbes, Leão de ouro na competição Digital Craft do Cannes Lions 2018. “O objetivo da Forbes é chamar a atenção dos brasileiros para o problema da corrupção no nosso país, o quanto ela é grave e atrasa o desenvolvimento da nação. Temos visto, nos últimos anos, muitas marcas, como a Forbes, se apropriarem de mensagens fortes, de interesse da sociedade em geral, para mobilizar as pessoas para algo que é do bem, que pode ajudar o outro e melhorar o mundo em que vivemos. Cito ainda outro exemplo da Ogilvy, o caso da campanha The dress for respect, que ganhou Leão de bronze de Glass para a Schweppes – ela lembra a importância do respeito. No passado, ainda conquistamos outro Glass com Meninas fortes, para Nescau (Nestlé), campanha que mostra que assim como o esporte agrega valores e ensina os meninos, também faz o mesmo pelas meninas, ou seja, todos nós somos iguais. Esses são três exemplos muito bem-sucedidos de campanhas que tinham uma mensagem social importante, que foram criadas para clientes privados. As marcas tomaram coragem e já entenderam a importância de agregar alguns temas sociais aos seus planos de comunicação; Cannes é uma grande vitrine para tudo isso e mostra quem está na frente”, argumenta Felix del Valle, diretor-geral de criação da Ogilvy Brasil.

A campanha The dress for respect mostra Luisa, Juliana e Tatiana usando um vestido com sensores que mediam a quantidade de vezes que eram bulinadas nas baladas. A cada toque, uma mensagem era encaminhada para uma central por wi-fi. O ponto central da ação da marca Schweppes é mostrar o quão deselegante é esse formato de abordagem. Em quase quatro horas de gravação, as modelos foram tocadas 157 vezes.

“O assédio é uma situação que não podemos mais ignorar. Queremos aproveitar a força da marca para conscientizar e sensibilizar as pessoas sobre os problemas da sociedade. Por meio dessa ação, Schweppes quer convidar os homens a uma atitude de respeito com as mulheres na noite, onde a marca se faz muito presente”, finaliza Vinicius Limoeiro, gerente de comunicação e marketing integrado da Coca-Cola Brasil.

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