Profissionais entregam voluntariado como presente para São Paulo
“Atendimento, mídia, planejamento, criação e produção trabalham numa causa verdadeira, sonhadora e até mesmo ingênua e quase impossível. Mas é aí que mora a graça da coisa. Se é impossível, quem sabe o impossível acontece e ela dá certo
Os profissionais do mercado da comunicação não apenas criam campanhas de cunho social dignas de premiações mundo afora. Eles também sabem arregaçar as mangas, extraindo do voluntariado verdadeiras lições para causas que sangram pelas ruas de uma cidade sofrida, mas ao mesmo tempo polo criativo, cultural e de diversidade. São Paulo, que chega aos seus 468 anos nesta terça-feira (25), encontra na propaganda mãos dispostas a estender ajuda.
Na história de Angelina, contada pela assistente de atendimento da Publicis Brasil Fernanda Jesus, está um dos retratos deste aniversário. A cada chuva, um pedaço do teto da moradora da comunidade City desmoronava.
“Quando fomos ver se o perfil entrava nas condições de moradia, ela não quis nem olhar na nossa cara, dizendo que muitas pessoas já falaram muito, e fizeram pouco”, relata Fernanda, que desde 2018 é voluntária na ONG Teto.
Uma das principais atividades da entidade é a construção de moradias emergenciais e Fernanda integra o time que faz a comunicação social das construções, cuida das famílias e comunidades. Explicada a troca de responsabilidades, o trabalho foi realizado em conjunto. “No dia da entrega, ela agradeceu por não termos desistido”, lembra Fernanda.
A luta é por um olhar mais sensível e para alavancar pequenos empreendedores. “São Paulo é uma cidade multicultural. Tem variações culinárias, shows de todos os gostos e muita arte. Mas nem tudo é acessível”, lamenta. Fernanda expressa a sua indignação ao ver a potência de uma cidade que carrega tantas pessoas invisíveis e profissionais desvalorizados.
Nó na garganta
Sonhos também são arrastados pela enxurrada de descaso do poder público, que não poupa nem as crianças. Voluntária do Instituto Edificando, que oferece aulas de balé, inglês, música, lutas e reforço escolar em uma comunidade da Zona Norte de São Paulo, a recepcionista Amanda Rosa, da CP+B, nutre o desejo por um futuro melhor para crianças em situação de vulnerabilidade. Mas, durante uma das oficinas, o desalento bateu forte.
“Muitas não tinham sonhos, e esse foi um momento onde me emocionei. Para eles, aquela realidade é normal e não há condições de algo melhor. Nesse momento, me senti mal, mas usei aquilo para mostrar que elas podem ir além”, conta.
A mesma sensação tomou conta de Raielle Mazarelli, estagiária de planejamento da Publicis Brasil. “Foi quando uma criança disse que queria ter um chuveiro. Eu me senti péssima, não sabia o que responder, parecia algo tão simples, mas não faz parte da realidade de todos”, admite.
Voluntária desde 2018 no projeto de Extensão Vila Paula, grupo de alunos do curso de medicina, enfermagem e fonoaudiologia que assistem a uma comunidade de Campinas, a estagiária ajuda nas divulgações, brincadeiras com as crianças e registros.
Leonardo Pellegrino, executivo de contas da WMcCann, também sentiu um nó na garganta quando um garoto se aproximou, e disse: “Tio, eu quero aproveitar o gosto, não sei quando vou ter de novo”.
Em um dia frio e chuvoso de 2018, o menino comia um pão, servido durante um café da manhã oferecido pela ONG Manacá da Serra para entregar mantimentos à população residente em áreas de mananciais no extremo leste de São Paulo.
Pellegrino faz parte de uma instituição religiosa que ajuda a arrecadar alimentos, produtos de higiene pessoal, cobertores e roupas para mais de 500 famílias cadastradas nessa instituição.
Boca no trombone
Unânime, a desigualdade social é o que mais entristece os profissionais, mesmo em meio à pluralidade de uma metrópole que hoje instiga os jovens a lutarem cada vez mais por igualdade e pela democracia. “Temos tantas coisas boas acessíveis em questão de minutos, mas caminhamos paralelamente a pessoas que passam necessidade bem abaixo de nossos olhares”, compara Pellegrino.
Sugerir o consumo de produtos que não só tenham qualidade, mas também valor social é um dos clamores do executivo. “Clientes e agências estão cada vez mais mobilizados a mudar o mundo. É preciso usar a própria comunicação a nosso favor”, afirma.
Estratégias para sensibilizar as pessoas não faltam. “Quem trabalha com comunicação precisa amplificar vozes. Vejo o trabalho na agência como uma oportunidade de descobrir nomes e histórias que podem ser relacionadas com os objetivos de cada cliente”, acrescenta Juliana Cristina dos Santos, analista de conteúdo da Jüssi, que ajudou a criar estratégias de comunicação para um projeto de aceleração de carreiras de mulheres negras do Grupo Mulheres do Brasil.
A agência já divulgou também a organização humanitária Refúgio 343 e o Empatia nas Escolas, projeto que busca aprofundar a reflexão sobre o voluntariado.
“Temos acesso a fontes e contatos na mídia que nos possibilitam colocar de pé campanhas que contribuam para a conscientização. Temos essa responsabilidade”, concorda Júlia Sariev, supervisora de atendimento da CP+B.
Ela participa de um grupo da Casa de Oração e Estudos Aparecida Castelli, que a cada 15 dias distribui alimentos e roupas para moradores de rua na região de São Bernardo do Campo.
“Eles são muito gratos, e isso é muito lindo. O pensamento coletivo chama a atenção. Eles pedem para deixarmos alimentos para o colega ou acabam não aceitando, pois se já se alimentaram, não querem que falte para quem ainda não comeu”, explica Júlia. Ela ainda atua em um projeto que há 21 anos doa brinquedos para crianças carentes de Suzano. “Basta ter vontade e nos abrirmos para a experiência”, ensina.
Frustração
De acordo com o último Censo da População em Situação de Rua, realizado pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) da prefeitura de São Paulo em 2019, existiam 24,3 mil pessoas sem moradia na cidade de São Paulo.
Já o Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo (MEPSR-SP) estima que o número alcance cerca de 66,2 mil cidadãos atualmente. O próximo levantamento da prefeitura seria realizado em 2023, conforme estabelece a Lei 17.252/19, que consolida a Política Municipal para a População em Situação de Rua.
Mas a atual gestão decidiu antecipar a pesquisa para entender o impacto da pandemia e estabelecer novas diretrizes e políticas públicas. A sistematização de dados deve ser concluída até fevereiro. Segundo dado mais recente, a população em situação de rua aumentou 31% durante a pandemia.
Promessas não cumpridas afligem Marcelo Reis, co-CEO e CCO da Leo Burnett Tailor Made e ARC, e idealizador do movimento #VoltaPinheiros. A ideia foi criada em 2017 utilizando todo o aparato e expertise de comunicação.
Um ano depois, o governo de São Paulo lançou o projeto Novo Pinheiros para limpeza e revitalização do rio, “com direito até a promessa do governador João Doria de finalizar esse trabalho até o fim de 2022”, relembra Reis.
O que seria apoio, no entanto, virou decepção. “A falha é o deadline da promessa. É impossível deixá-lo limpo até dezembro de 2022. Por isso, o governo esconde a DBO (demanda bioquímica de oxigênio). Um estudo da Universidade de São Caetano do Sul e outro da SOS Mata Atlântica mostram que as águas do rio estão mais sujas ainda. Tudo indica que foi promessa para ganhar a eleição baseada em um prazo irreal. Isso, sim, me entristece”, critica Reis.
O movimento continua a atuar como agente de cobrança das autoridades públicas para manter o tema em evidência na pauta da cidade. Ativações midiáticas, jingles, filmes, social mídia, sampling, panfletagem dirigida e mala direta já resultaram em ações como emoji de cocô boiando no rio, bustos de governadores feitos de excrementos e expostos na Avenida Paulista, perfume fétido criado com a água do rio e ações educacionais em escolas públicas.
Ainda há esperança para o rio que deságua no esquecimento. “Atendimento, mídia, planejamento, criação e produção trabalham numa causa verdadeira, sonhadora e até mesmo ingênua e quase impossível. Mas é aí que mora a graça da coisa. Se é impossível, quem sabe o impossível acontece e ela dá certo”, torce Reis.
A arte de ajudar
Da margem dos rios que cortam a cidade às ruas encravadas em suas entranhas, São Paulo não mente. Mostra uma realidade cruel, que não passou incólume diante dos olhos de Beatriz Lopes, diretora de arte da WMcCann. Ela se emociona ao reviver a conversa que tirou uma moça da Cracolândia.
“Ali, ela decidiu ir para uma das casas de acolhida da Missão Belém”, testemunha Beatriz, que também faz cobertura fotográfica em eventos no Brasil e no Haiti, e apresenta as cerimônias do Exportaballetvida, contando como a arte transforma a vida de quase 100 crianças a cada encerramento de ciclo.
“Profissional de comunicação é agente de mudança. Além de colocar a mão na massa, trabalho para intensificar vozes, seja com doação, apadrinhamento ou alcance de mais pessoas. São Paulo só pode ser uma cidade melhor para viver e trabalhar quando olho para o lado e vejo ‘os meus’ comigo”, reflete.
Quem chama os cidadãos paulistanos para mudanças também se transforma. Ariane Rodrigues, analista de estratégia da Interbrand, conheceu o voluntariado em 2016 e, a cada entrega de comida e cobertores para a população em situação de rua pela ONG Instituto GAS, retornava com o afago de abraços em desconhecidos.
“É uma sensação recompensadora. A experiência do voluntariado faz crescer muito mais quem o pratica”, garante Ariane, que integra a equipe de marketing do instituto, além de coordenar o projeto. O GAS começou nas proximidades da estação de metrô Jardim São Paulo - Ayrton Senna, na Zona Norte da capital paulista, mas hoje leva cestas básicas para comunidades carentes de toda a cidade.
“São pessoas que vivem de forma precária e são dadas como invisíveis. Estar presente para ouvi-las e ajudá-las já é muita coisa”, observa Ariane. A especialista em marca também atuou no Human Day, evento realizado na Praça da Sé, região central de São Paulo, voltado para pessoas em situação de rua.
Mais que impulsionar ONGs e coletivos, Ariane participa da rotina dos projetos sociais para entender a desigualdade cada vez mais latente nas calçadas, praças e ruas. Compaixão, acessibilidade e um olhar mais humano podem ser os melhores presentes para a cidade nesta data. “O voluntariado influencia todas as áreas da minha vida. Não consigo me enxergar diferente”, pontua Ariane.
Atitude
Entre fascínios e tristezas, Laís Baquini, art director na Hogarth Brasil, cita a inspiração vinda das intervenções artísticas típicas de uma metrópole que, ao mesmo tempo, tromba com a indiferença. “Traz angústia pensar até onde o egoísmo e a falta de empatia podem ir”, reclama. Em campanhas feitas em parceria com o projeto Costurando Sonhos, em Paraisópolis, Zona Sul, reside o desejo de fazer da ação de doar uma rotina.
Desconhecimento e falta de confiança estão entre os problemas a serem combatidos pelos “amigos da comunicação”. Publicitários, filmmakers, radialistas e jornalistas integram o grupo que impulsiona as arrecadações, enquanto a ONG Costurando Sonhos e a G10 Favelas cuidam da logística de compra e entrega de cestas básicas.
A ideia partiu de uma amizade de criança. Laís faz aniversário um dia depois de sua melhor amiga, Beatriz Baldan. Desde os 10 anos, elas comemoram juntas. Desta vez, resolveram entregar cestas básicas para garantir a ceia de Natal de famílias afetadas pela pandemia da Covid-19.
Foi assim que conheceram a Costurando Sonhos. Hoje, como artista, Laís participa de projetos audiovisuais como o documentário Sob o Viaduto, que fala sobre o projeto Garrido Boxe, academia montada debaixo do Viaduto Alcântara Machado, na Zona Leste, para reintegração de moradores de rua; e o documentário Sangue Sagrado, que mostra o tabu da menstruação na Nigéria.
Refúgio
A cidade transformada em metrópole atrai também quem busca refúgio mesmo que esteja longe das suas raízes. Foi o que aconteceu com a congolesa Lucie, cuja história ganhou, nas palavras de Cibele Rodrigues, head of consumer insights da CBA B+G, o testemunho de um dos momentos mais emocionantes e difíceis da sua experiência como voluntária.
Cibele fazia um atendimento como facilitadora social da ONG Pacto pelo Direito de Migrar (PDMIG) em uma ocupação no centro de São Paulo, e Lucie morava no local que havia pegado fogo, mas queria mesmo ajuda para reencontrar os seus três filhos. Na fuga do Congo, eles se perderam.
“Na vida, para a maioria das pessoas, existem dores tão maiores e mais complexas. O mundo com mais solidariedade eleva a alma e fica mais leve para todos os lados”, reconhece Cibele. Apesar da faceta encantadora da cidade, que abraça a diversidade de povos, Cibele se entristece com a falta de espaços públicos como parques e praças bem cuidadas para respiros na selva de pedras, problema ainda mais flagrante em bairros periféricos.
Lado a lado
Não é preciso ir longe. A necessidade de ajuda bate à porta vizinha. Ao lado do Corporate Center Cidade Jardim, endereço da BETC Havas, está a comunidade indígena dos pankararus, no Jardim Panorama. Após reportagem sobre as dificuldades enfrentadas pelos moradores, Renato Carnicelli, diretor de tecnologia da informação da agência, propôs que as máquinas em desuso fossem vendidas para os funcionários.
A BETC Havas aderiu, e cerca de R$ 130 mil foram convertidos em 1,2 mil cestas básicas, 500 de alimento e 700 de higiene, entregues à Associação Indígena SOS Pankararu no dia 27 de julho de 2021. Mais de nove mil pessoas são atendidas na comunidade do Real Parque, em São Paulo.
O momento mais comovente foi o dia de entrega das cestas básicas. Além de receber o agradecimento dos moradores, Carnicelli guarda o sentimento de gratidão. A agência ajudou a aliviar a fome, que hoje atinge milhões de brasileiros. Ainda assim, ele se encanta com as oportunidades e possibilidades da cidade de São Paulo. “Como profissionais da comunicação, temos a facilidade de acessar meios e caminhos para contribuir para uma cidade mais humana e acolhedora”, comenta Carnicelli.
Transformação
O poder da comunicação em alertar sobre os problemas latentes da sociedade foi decisivo para que Beatriz Geller, executiva de contas da CP+B, decidisse atuar na área. “Ainda me sinto pequena diante da mudança que o mundo deve e precisa passar. Aos poucos, pequenos hábitos e atitudes podem ser transformadores”, confia.
Desde 2019, Beatriz ajuda crianças carentes, moradores de rua e realiza atividades na natureza. Antes da pandemia, participava do Reciclismo com ações em escolas públicas. Nos últimos meses, ajudou diferentes ONGs que montam kits de comida e cuidado pessoal para pessoas que vivem nas ruas. “Poder colaborar traz essa sensação impagável de me sentir completa”, confessa.
Sampa
Alan Strozenberg, sócio-fundador e chief creative officer da Z515, vai além. “Se uma pessoa pode contribuir, tem obrigação de fazer a sua parte”, resume. A agência desenvolve a estratégia, criação e a captação de veículos para o Lar das Crianças. O trabalho pro-bono é realizado desde 2019 pela Z515, mas Strozenberg é voluntário há aproximadamente cinco anos. O executivo se emociona ao falar sobre a organização do jantar anual da instituição.
Mesmo online, o evento conseguiu garantir a presença do ator Fabio Porchat. “Foram mais de 300 pessoas, que arrecadaram um valor recorde, ajudando centenas de crianças a terem um futuro melhor”, recorda Strozenberg. Apesar do lado cosmopolita da “Nova York da América do Sul”, São Paulo carrega a insegurança como um dos principais gargalos apontados pelo executivo. “É como se nos tirassem o direito de ir e vir”, frisa.
A Terra da Garoa já não é tão mansa. E ainda encontra nas mazelas da desigualdade social mais motivos para castigar quem nela insiste em manter a sua fé. Apesar “da dura poesia concreta de tuas esquinas”, cantada nos versos de Caetano Veloso há 44 anos, Sampa fascina, encanta e inspira criatividade. Com tantos opostos, “alguma coisa acontece no meu coração” toda vez que a arte salta aos olhos ou quando o semblante vazio de quem vive nas ruas entristece a alma.