Propaganda em busca de sentido

 

Criatividade pode mudar o mundo. Esta é a principal crença dos sócios da Lemz, uma pequena agência de 45 pessoas baseada em Amsterdã que obteve destaque no Cannes Lions este ano com um impressionante trabalho para a ONG Terre des Hommes: “Sweetie”, uma menina filipina virtual de 12 anos , criada para enganar e ajudar a identificar e prender pedófilos na internet. “Sweetie” levou o concorrido Grand Prix for Good e outros cinco de ouro. No AD&D inglês,  “Sweetie” conquistou Lápis Branco, Preto e Amarelo – fora todos os prêmios na Holanda. A Lemz foi criada em 2000 por um grupo de sócios que vinha de grandes agências como Lowe/Lintas. Remco Marinus, sócio e diretor de criação, entrou um pouco depois, para construir inicialmente um negócio digital, voltado para ativação de marcas na internet. Ao longo do tempo, a agência evoluiu seu pensamento para o que chamam de “insights sociais” e “pró-social” (pro-social thinking). O conceito os levou a criar trabalhos que provam a força e a crença das marcas, e as ajudam a assumir um papel social ativo na sociedade. Confira os principais trechos da entrevista que Remco concedeu ao propmark durante o Cannes Lions 2014.

Lemz, o nome
“Um dos sócios, Mark Woerde, toca numa banda. Lemz era uma das opções de nome para a banda, que acabou ganhando outro. Quando a agência foi aberta, esse foi um dos nomes na mesa. Significa ‘Liquid Encapsulated Melt Zone’, vem da química. O conceito da ‘melt zone’ passou a fazer mais sentido há dois anos, quando decidimos dividir a agência em ‘zonas’ diferentes, pequenos grupos de pessoas trabalhando juntas, o que nos permitiu ser mais rápidos e trabalhar de maneira mais próxima uns dos outros.”

Sonho
“Comecei muito cedo em propaganda. Era um sonho, na época, trabalhar nisso. Há uns anos encontrei num júri o Rooney Carruthers, diretor de arte que ajudou a criar as campanhas maravilhosas para Häagen-Dazs e Levi’s na BBH. Foram essas campanhas que me fizeram entrar para a propaganda. Sorvete foi tratado como uma marca de moda, algo completamente diferente. Foi incrível conhecer quem me serviu de exemplo. Fiz muitas coisas ao longo da minha carreira: trabalhei como criativo, como produtor, como diretor de conta (apenas por nove meses como uma maneira de voltar à publicidade). Sou redator e um pouco diretor de arte, mas me vejo como um criador de conceitos.”

O modelo
“Quando começamos a agência,  em algum momento começamos a ficar parecidos com as agências que tínhamos deixado para trás – com os tradicionais departamentos de criação, de atendimento, de planejamento. Depois decidimos dividir a agência em ‘zonas’, em grupos que misturam disciplinas diferentes. Estrategistas, criativos, produtores, em grupos pequenos que lhes permitem trabalhar mais próximos. Cada ‘zona’ se organiza de acordo com a necessidade: se há necessidade de contratar um artista, um técnico, um produtor para o time, isso é feito. Gostamos de trabalhar com especialistas. É ótimo. Tentamos manter a agência pequena, compacta e flexível. Por isso quando precisamos de um determinado perfil de pessoa para um job – como um professor especializado em felicidade ou um artista, contratamos durante um período. Desde que começamos trabalhamos muito próximos da universidade e de professores para dar apoio e consistência às nossas ideias, ou ter um papel na parte de RP de uma campanha, por exemplo.”

Amor e ódio
“Sempre tivemos um tipo de relação de amor e ódio com a propaganda, e de certa forma ainda temos. Fiquei feliz quando o Cannes Lions foi mudado para Festival de Criatividade. Ainda fazemos propaganda, é nossa atividade principal, mas baseados na crença de que se pode fazer mais com criatividade. Acredito que deixar de falar em propaganda e falar mais de criatividade nos dá esperança de estar fazendo algo de mais relevante. ‘Sweetie’ não é propaganda, é uma solução criativa para um grande problema.”

“Sweetie”, o começo
“O projeto começou quando Mark leu uma matéria sobre pedofilia na internet que realmente o incomodou e ele enviou para as principais pessoas da agência, sugerindo que fizéssemos algo a respeito. Acredito que esse assunto sempre foi tratado de um ângulo incorreto na Holanda: tentam chamar atenção, arrecadar dinheiro e aplicá-lo para tentar salvar as vítimas, as crianças. Pensamos em fazer o trabalho inverso, tentar pegar os caras que praticam o abuso online. Entramos em contato com a Terre des hommes, eles explicaram como trabalham: exatamente como esperávamos, arrecadando dinheiro, aumentando a conscientização em uma escala muito pequena, contactando pais, tentando salvar crianças. Um trabalho muito difícil. Como tentar colocar um band-aid numa ferida gigantesca. Muito trabalhoso, poucos resultados. Propusemos tentar pegar os criminosos que se escondem atrás das câmeras. Eles perguntaram como e respondemos que ainda não sabíamos, mas se eles nos passassem um briefing poderíamos começar a pensar a respeito. A solução na realidade veio rápido. Era preciso chamar a atenção e fazer com que todos os governos se voltassem para pegar os criminosos que abusam de crianças filipinas. As primeiras ideias foram um pouco infantis. Coletar os dados dos criminosos e confrontá-los com uma mensagem, ideias que tinham que ser descartadas. Aos poucos foi ficando sério: criar essa menina em 3D.”

A cultura do sim
“É preciso, antes de tudo, estar em um ambiente com uma cultura capaz de aceitar e apostar em ideias como ‘Sweetie’. Viemos do digital e ao longo dos últimos 14 anos desenvolvemos uma espécie de confiança para criar campanhas notáveis em escala menor, sem focar em festivais. Desenvolvemos uma confiança que faz com que ninguém no time diga ‘como assim? Isso é loucura!’ Tentamos realizar as ideias malucas que temos. Ninguém na equipe diria ‘não, melhor não’. A menos que não seja uma boa ideia. Todos batalham pelo ‘sim’. Esse foco é muito forte na cultura da nossa agência, e nos permitiu ir em frente e realizar uma campanha como ‘Sweetie’.”

“Sweetie”, a produção
“Claro que a Terre des hommes não tinha dinheiro para produzir uma modelo em 3D e toda a tecnologia que isso envolve, a equipe para operá-la, toda a segurança. Eles investiram uma parte e o restante foi investimento nosso. Foi difícil tornar ‘Sweetie’ o mais real possível, trabalhamos com vários parceiros e todos tinham que manter segredo. Dentro da agência, apenas dez pessoas sabiam do projeto. Dissemos para o restante do pessoal, durante dez meses, que era um projeto para a Unicef. Fizemos uma extensa pesquisa, durante seis meses, sobre a situação nas Filipinas e outros países onde o problema é grave, e como o tema é tratado do ponto de vista legal. Quatro do nosso time foram às salas de bate-papo conversar com homens, se passando por meninas, durante cerca de dez semanas, para entender o processo, em horários diferentes do dia, muitas vezes todos os dias da semana. Isso funcionou num local com segurança, longe da agência. Um psicólogo acompanhou o processo e deu apoio aos profissionais envolvidos, pois a experiência é muito forte. Não podíamos contar para ninguém o que estávamos vivendo.”

A missão cumprida
“Consideramos a campanha encerrada porque entregamos algumas coisas. Ajudamos a pegar mil homens. E além dessa lista dada à Interpol, Europol e polícia holandesa, há um documento gigantesco sobre todo o processo de realização do projeto, muita informação sobre esse mundo, o perfil desses homens, como se comportam. Está bem documentado. Acredito que o press release foi o final da campanha. A intenção não era somente identificar mil pedófilos – até porque esse número é insignificante – mas provar que a solução funcionou. Focar os pedófilos é uma maneira mais eficaz de combater o problema, no lugar de somente tentar ajudar as vítimas. Criamos um kit de treinamento para a polícia, ensinando todo o processo para pegar os pedófilos usando a técnica que desenvolvemos. Demos sessões de treinamento para policiais e lhes oferecemos, gratuitamente, o software de ‘Sweetie’. Tudo para provar que a ação proativa da polícia pode e deve ser usada. Na publicidade, ‘Sweetie’ é um exemplo de como a criatividade pode e deve ser usada para ajudar a resolver problemas no mundo. Pedofilia na internet é apenas um deles.”

As marcas e o mundo
“Meu sócio, Mark, escreveu há dois anos um livro chamado ‘Como a propaganda vai curar o mundo e o seu negócio’. O que ele diz, basicamente, é que no mundo inteiro as pessoas têm alta expectativa em relação a marcas e sua capacidade de transformar o mundo em um lugar melhor. Outro insight do livro é que 80% das pessoas sentem necessidade de fazer algo por outras pessoas. Querem ajudar e enxergam nas grandes marcas a capacidade de ajudá-las nessa missão, em grande escala. O livro expõe um pouco do que a criatividade pode fazer para construir um mundo melhor. É no que acreditamos. A primeira campanha voltada para esse conceito foi feita para a marca de sabão em pó Omo em 2003. Naquela época, chegamos à conclusão de que a marca poderia fazer o melhor sabão em pó do mundo, mas que isso nada mudaria o fato de que as mulheres continuavam tendo que fazer todo o serviço de lavanderia. Nossa campanha convidava os homens a contribuir e isso gerou uma discussão a respeito dos direitos dos homens e das mulheres no âmbito governamental. Depois trabalhamos para Dove na Holanda. Dove é uma marca que descobriu como usar sua marca para elevar a autoestima das mulheres. Criaram uma fundação, na qual investiram um bocado de dinheiro, focada nessa missão.”

Acerto de contas
“As agências estragaram tudo durante muitos anos, cobrando fortunas por ideias ruins, espalhadas em mídia impressa, eletrônica, que não havia nada a dizer e as pessoas tinham que assistir porque não existia escolha. Acredito que trabalhos como ‘Sweetie’, trabalhos para ONGs, trabalhos em que o dinheiro não é o vetor principal, são uma maneira de acertar as contas com o nosso passado, como indústria. De certa forma, ‘Sweetie’ é um alívio. A reação que tivemos de colegas no Cannes Lions foi impressionante. Pessoas nos disseram que o projeto mudou suas vidas, a maneira de pensar propaganda, deu orgulho, esse tipo de coisa. Temos um grande passado de bobagens, financiadas por fortunas. Claro que também fizemos coisas incríveis e foram elas que me levaram a trabalhar nesse negócio.”

Nobel de Criatividade
“Nosso objetivo é ganhar um Prêmio Nobel de Criatividade – para uma marca, não para a agência, claro. A ‘luz’ que nos guia hoje é criar trabalhos que tenham tanto impacto no mundo que possam realmente conquistar um prêmio nobel. Não chegamos lá ainda. Estamos no começo. Buscamos resultados reais. Os limites entre a propaganda e o trabalho humanitário, de controle, de corrigir injustiças estão gradualmente desaparecendo. Não me surpreenderia se uma marca e uma agência de publicidade encontrassem uma maneira de erradicar a malária do mundo. Essas coisas podem acontecer. É preciso ter criatividade e convencer marcas de que elas podem realizar coisas importantes.”

Em busca de sentido
“Estamos em busca de um sentido. Queremos voltar a fazer sentido. Esse é o nosso objetivo, em uma frase: fazer sentido. Ouvimos muitas coisas por aí sobre modelos de agência, e vivemos um período de transição. Mas no fundo, é o que buscamos e toda a indústria. Dá para fazer isso, e é possível. A indústria como um todo começou a duvidar de si mesma e isso é bom. Nos fortaleceremos no processo.”