Reciclagem precisa fazer parte do propósito das marcas
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Montadora que faz bolsas? Empresa de bebidas que desenvolve florestas? Embalagens de alimentos que viram móveis? Parece sem sentido, mas é justamente o contrário. Cada um desses projetos inusitados tem um significado em sua essência que baseia não somente a ação, mas permeia de modo crescente o mindset das empresas. Não faltam exemplos de companhias que reaproveitam resíduos e sobras, o que faz bem para o ambiente e para o bolso. Um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) estimou em 2010 que o Brasil deixa de ganhar cerca de R$ 8 bilhões ao ano por não reaproveitar resíduos no próprio sistema produtivo da empresa ou com a venda para reciclagem. Em entrevistas, Gustavo Luedemann, um dos autores da pesquisa, disse que “a indústria tem grande interesse em receber esse material porque é mais barato do que o extraído da natureza”.
Para chegar ao montante desperdiçado, o Ipea pesou recursos econômicos na produção, ativos ambientais, gastos com insumos que poderiam ser enxugados usando recicláveis, economia com água e energia elétrica, e como o uso dos recicláveis liberaria espaço em aterros. Ainda segundo o estudo, a reciclagem de apenas 12% do material disponível já geraria R$ 1,4 bi e R$ 3,3 bi anuais.
Mas não são só vantagens econômicas que devem ser consideradas por empresas e governos. A razão é simples: não é apenas reciclar nem adianta fazer só a obrigação. A questão engloba imagem com stakeholders e de sobrevivência.
A Faber-Castell criou e cultiva uma floresta há cerca de três décadas
Inusitado e vital
A Faber-Castell é uma das mais tradicionais e maiores fabricantes de lápis do mundo. Para seguir viva e relevante para a sociedade, ela tem os próprios programas de produção de madeira para a fabricação dos EcoLápis no Brasil e na Colômbia, garantindo o abastecimento sustentável do recurso. Do ponto de vista estratégico, esse é um dos principais desafios para o futuro da companhia, que precisa de 150 mil toneladas de madeira por ano.
Há cerca de três décadas, uma área em Prata (MG) de aproximadamente 10 mil hectares de solo improdutivo, a dois mil km da floresta amazônica, foi transformada. A empresa plantou milhões de mudas de pinus caribaea, uma espécie de árvore que prospera no cerrado. No local, são cultivados cerca de 20 metros cúbicos de madeira por hora e as florestas abastecem a fábrica em São Carlos (SP), que produz dois bilhões de EcoLápis por ano.
Eduardo Ruschel, diretor de marketing e inovação da Faber-Castell, ressalta que a companhia criada em 1761 tem a consciência socioambiental como um dos pilares. Com a ajuda da tecnologia, esse conceito cada vez mais transcende os negócios para chegar à formação e conscientização das crianças. O case Floresta Sem Fim, criado pela David, ganhou um Leão de Ouro, na categoria Mobile, no 64º Cannes Lions, em 2017.
“Nosso EcoLápis vem de madeira reflorestada. Esse conceito nem sempre era entendido pelas crianças, e tínhamos de passar isso de uma forma mais lúdica. E aí viemos com a campanha Floresta Sem Fim. Estamos estendendo isso para a sala de aula. Queremos passar esse conceito como um recurso para os professores darem às crianças e mostrar a importância do reflorestamento”, lembra.
Desde 2010 a Associação Borda Viva usa as sobras de tecido de bancos e cintos produzidos pela Renault para fazer diversos itens; projeto ajuda dezenas de mulheres
Outros exemplos que estão surgindo e se aperfeiçoando sinalizam como é essencial unir a “pequena” atitude da reciclagem à missão da empresa de forma profunda, permanente e indissociável. Esse processo exige ainda cultivar o propósito da companhia e tornar sua trajetória o mais sustentável e inofensiva possível ao planeta.
Além de fabricar carros, a Renault também “faz” bolsas. Parece estranho, mas é o que ocorre desde 2010 com a Associação Borda Viva, que usa as sobras de tecido de bancos e cintos para fazer diversos itens. Cerca de 40 mulheres trabalham reaproveitando esses materiais e vendendo eles, gerando renda para a comunidade. Parte do merchandising vendido no Salão do Automóvel por exemplo foi feito por elas.
Federico Goyret, diretor de marketing da montadora, explica que para a empresa o projeto é muito mais do que apenas reciclar. “Estamos alinhados a todas as normas ambientais, mas vamos além disso. A Renault está absolutamente comprometida em ajudar a sociedade da qual participa e mora. Eu não trabalharia em uma empresa que não fosse ecologicamente sustentável. Todos visam contribuir positivamente”, diz.
AMA
Também desde 2010, o Grupo Petrópolis, que detém marcas como Itaipava, TNT Energy Drink e Crystal, promove o Projeto AMA (Área de Mobilização Ambiental) com ações nas regiões onde tem fábricas.Além de ter plantado mais um milhão de mudas de árvores, a empresa mantém as espécies e desenvolve o PEA (Programa de Educação Ambiental) para crianças de escolas municipais. O projeto era feito com o Instituto Chico Mendes e hoje está com a consultoria ambiental Arcadis.
Eliane Cassandre, gerente de marketing do Grupo Petrópolis tem bastante orgulho do AMA, que foi seu primeiro projeto na companhia. Ela explica que os principais objetivos incluem preservar a flora e reflorestar, conservar os recursos hídricos, reduzir os impactos negativos de resíduos na comunidade, e promover integração e educação ambiental. Já os benefícios reúnem a captação de milhares de toneladas de CO2 da atmosfera, a retenção de bilhões de litros de água por ano, a restauração e enriquecimento de milhões de metros quadrados de áreas de mata atlântica.
Foram plantadas cerca de 48 mil árvores em Boituva (SP), 392 mil em Petrópolis (RJ), 537 mil em Teresópolis (RJ) 113,5 mil em Rondonópolis (MT), 26 mil em Alagoinhas (BA) e 20,2 mil em Itapissuma (PE). Além disso, até 2016 o PEA atendeu 3,6 mil estudantes e fez 482 trilhas ecológicas. “Não é só plantar. É cuidar e fazer a manutenção das mudas por dois anos até chegarem a fase adulta, acompanhar”, diz sobre a seriedade de um projeto assim.
Pontual e eficaz
Uma ação não precisa necessariamente ser constante para impactar positivamente o entorno. Atitudes pontuais e genuínas podem modificar consideravelmente o ambiente e as pessoas que o frequentam. Em São Paulo, o Allianz Parque transforma o plástico usado em eventos em sacos de lixos, e compra eles novamente. Já em Porto Alegre (RS), outra iniciativa que chama a atenção foi feita pela Uber na Orla do Guaíba. Adotada pela empresa em agosto de 2018, a área tem 50 lixeiras duplas (com 20 e 40 litros de capacidade), acrescidas de 10 contentores triplos extras (capacidade de até 240 litros cada) aos fins de semana.
Durante o verão, aumenta o público e a quantidade de lixo. Todas as semanas, desde o início de dezembro, foram retiradas cerca de três toneladas de resíduos, quase o dobro do recolhido até novembro. Para minimizar os danos e inspirar a população, a Uber recolheu os materiais descartados e devolveu uma parte em produtos. As garrafas, sacolas e embalagens de plástico foram transformadas em uma viseira distribuída ao público nas atividades no espaço montado pela empresa no parque em fevereiro.
Segundo Ruddy Wang, gerente-geral da Uber para a região Sul, reciclar é uma vocação da Uber e um conceito amplo. “Reciclamos os hábitos das pessoas mudando as maneiras de se locomover e de se complementar a renda. Ao adotarmos a Orla, ajudamos a reciclar a relação dos porto-alegrenses com umas das áreas mais bonitas da cidade. Trabalhamos para manter a área sempre limpa e preservada, e contamos com a colaboração de todos”, afirma.
Ação da Uber na Orla do Guaíba em Porto Alegre (RS) transformou resíduos plásticos em viseira gratuita para frequentadores
360º
Tendo a sustentabilidade direcionando os negócios e valores da casa, a Tetra Pak tem um rol extenso de ações sustentáveis. Atualmente até 82% das embalagens compostas de materiais de fontes renováveis e metade de toda a energia elétrica consumida pela companhia são de fontes renováveis. A estratégia contempla ainda projetos para educar e conscientizar sobre reciclagem e renovabilidade. “Nosso trabalho envolve estudantes, professores, cooperativas de materiais recicláveis e empresas, pois acreditamos que o desenvolvimento da cadeia de reciclagem no Brasil depende do fortalecimento de cada elo”, conta Valéria Michel, diretora de Economia Circular.
As ideias incluem o Recicla Jabaquara, feito em parceria com a ONG Espaço Urbano e apoio institucional da Swedcham (Câmara de Comércio Sueco-Brasileira), e o Palco da Reciclagem, teatro musical interativo em que crianças aprendem sobre cooperativas e ajudam os atores na separação desses materiais.
Uma das ações em escolas, o Recicla Jabaquara em parceria com cooperados da Cooperativa Sempre Verde
“Sendo protagonista dessas iniciativas, abrimos caminho para a participação dos nossos clientes e o estímulo para o desenvolvimento de novos produtos que apresentem a sustentabilidade desde a fabricação, passando pela embalagem até o pós-consumo”, explica.
A Tetra Pak também desenvolve o mercado, identificando empresas e produtos que podem utilizar o material da reciclagem das embalagens cartonadas. Hoje ela já atua no mercado de papel reciclado e de telhas ecológicas, além de concentrar esforços no segmento de produtos fabricados à base de plástico. A Infinitum62, em Elias Fausto (SP), por exemplo, aproveita o material da Tetra Pak para produzir poltronas pelo processo de rotomoldagem. Ela utiliza aproximadamente 900 embalagens cartonadas de 1 litro para fabricar uma poltrona com 80 cm de altura e 120 cm de largura e profundidade. No portfólio também há luminárias, brinquedos e outros itens de decoração.
Para a executiva, o debate em torno da proteção e preservação ambiental faz o consumidor buscar de forma crescente produtos de empresas alinhadas a práticas sustentáveis e com esforços consistentes. “Acreditamos no potencial do mercado brasileiro para a economia verde. O amadurecimento da responsabilidade compartilhada entre empresas, governo e sociedade é um caminho para novos avanços.”
As poltronas da empresa Infinitum62 são apenas alguns exemplos de itens feitos de plástico-alumínio reciclado da Tetra Pak