Rir de quê?
Eu nunca tive tanta dificuldade para fazer esta coluna como nestes dias de pandemia – uma rima que poderia ser rica não fossem estes tempos. Explico. Sempre há espaço para rir, mesmo nos momentos mais terríveis. Ou, quando o bom senso recomenda, não se toca no assunto. Não se pode achar um lado engraçado num atentado às Torres de Nova York. Nem em boa parte das notícias políticas no Brasil. Muito menos nessa pandemia onde a primeira morte foi a do bom senso. Por uma razão desconhecida, o vírus entrou para a política e as pessoas brigam a respeito de remédios, procedimentos e contagem de mortos. Todo mundo tem uma teoria. Seja qual for o despautério, há enorme possibilidade de ter um avalista de peso. Se não tiver, inventa-se. O que tenho lido de professor em Harvard falando os maiores absurdos não está nos anais. Tudo falso. Usei o exemplo de Harvard porque é um dos currículos mentirosos mais usados. Quando se quer justificar qualquer porralouquice basta colocá-la no papel e atribuir a um doutor qualquer. Inventa-se a tese e o autor dela. E parece que, quanto mais maluca a ideia, mais ganha corpo o time de signatários.
O que tem de cientista apresentando as mais insensatas soluções não está no gibi. Nem, claro, nas revistas científicas. De minha parte, não esperem nada. Estou me pautando pelo mais sagrado e sofisticado princípio científico. A profunda tese do “vai que”. Como “vai que” o mais sensato procedimento seja o afastamento social, cá estou homiziado em casa, na companhia de minha mulher que, coitada, teve a madrasta sorte de ter-me como parceiro de isolamento. Eu, que já achava que ela é uma heroína por me aturar, agora a elevo à categoria de santa por fazê-lo todo o tempo, dia após dia, hora após hora. Felizmente a casa é grande o suficiente para que cada um tenha sua área de trabalho com profilática distância. Falei de meu escritório? Pois aqui trabalho. Escrevo um tanto e remexo estantes, encontrando velhos artigos, velhos anúncios e velhas fotografias. Minha vida registrada em papel fotográfico, nas laudas, em recortes e CDs com filmes comerciais e gravações de rádio. Décadas de profissão vendendo as coisas que traziam conforto, status, alegrias e facilidades que hoje parecem jurássicas. E não falo do século passado, mas de anteontem, de ontem e, em alguns casos, hoje de manhã. Achei um anúncio de piano. Piano! Aquele imenso móvel que fazia sons martelando umas cordas e parece anacrônico não só pela potência acústica como pelo tamanho. A grande maioria dos apartamentos hoje tem as mesmas dimensões de um piano de cauda. No entanto, houve época em que muitas famílias tinham na sala esse instrumento. O Rio, capital da República, chegou a ser um dos maiores mercados de pianos do mundo. A expressão “carregador de piano” para exemplificar um trabalho insano era comum. Estamos conferindo na prática a teoria de que as pessoas se adaptam às mais diferentes condições de vida. Pense num esquimó, num árabe no deserto, num morador de palafitas, num presidiário e você estará pensando em mulheres e homens sobrevivendo em condições completamente diferentes do que a nossa. E tocando a vida. Alguns até gostando.
No Rio de Janeiro, informações sobre tiroteios interditando avenidas são trocadas por celular, tratadas como naturais. A expressão “está havendo tiroteio” causa o mesmo espanto do que seria a reação ao aviso de que está chovendo. Também achei num envelope colunas minhas de algumas décadas atrás. Décadas! Ou seja, venho contando casos há mais de 30 anos aqui neste espaço. E, tal como na velha piada, “é a primeira vez que acontece comigo”. Verdade. Nestas várias décadas, de uma forma ou de outra, eu achava um jeito de fazer meu leitor achar graça. Desta vez estou incapaz de encontrar um assunto que renda pelo menos um sorriso. Só me resta copiar de uma coluna de 1999 um trechinho. Tratava-se de casos “saia curta” onde as pessoas falam o que não devem. Era a história da secretária de um diretor respondendo ao telefone se o chefe dela iria demorar. Sua resposta foi definitiva : “pra caralho!”
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)