Com certa frequência eu me pergunto, ou me perguntam, sobre os caminhos que percorri para estar onde estou (sobre como um garoto preto, nascido e criado na periferia da Grande São Paulo, dividindo um quarto com os pais e os irmãos, com o pai assassinado aos 12 e nunca tendo concluído um único semestre de um curso superior, hoje é dono de uma agência que nasceu do zero e, oito anos depois, coleciona bons trabalhos para grandes clientes, com mais de 50 funcionários e outros números que desafiam a lógica e as circunstâncias).

Refletindo (e ainda processando) sobre minha trajetória, percebi o quanto do meu repertório cultural foi determinante: em grande parte, meu acesso e ascensão no mercado publicitário se deu porque, mesmo sendo um cara preto nascido na periferia, eu sempre consumi e me relacionei de forma exclusiva com uma cultura pop “branca” de classe média alta. Fui daqueles moleques que cresceram assistindo MTV no UHF por 8 horas diárias ao longo dos anos 1990 – uma emissora feita por e para jovens e adultos brancos de classe média alta – que ajudou a formar e manter toda uma geração de publicitários e jornalistas culturais em grandes espaços de criação, sempre se cercando de referências em comum.

Nunca fui fã e nunca frequentei espaços que tocavam samba, pagode, axé, rap, funk ou qualquer outra coisa produzida e organizada pela negrada. Minha turma sempre foi composta de caras brancos e nós sempre consideramos o que consumíamos melhor, superior, digno de grandes e longos debates.

Esses debates começaram a se materializar na internet através de grupos de discussões, que eu descobri logo no começo dos anos 2000. Foi aí que comecei a ter contato com uma imensidão de pessoas, com a diferença que agora não eram apenas meus amigos brancos da periferia, mas gente de classe média, classe média alta e gente rica, muitos deles já formados ou estudantes da ESPM, PUC, FAAP e USP, moradores de bairros nobres de São Paulo e Rio de Janeiro, que formavam redes que direta e indiretamente garantiam acessos e espaços em agências e redações.

Foi nesse meio dos grupos de discussão (e depois no Orkut “pré invasões bárbaras”) que fui construindo meu repertório e me conectando com todas essas pessoas, até que em 2007, depois de anos trabalhando em turnos da madrugada como suporte técnico de tecnologia e sem nenhuma pretensão ou crença de que eu me formaria em algum curso superior ou sairia da periferia, um amigo – desses que eu havia conhecido num grupo de discussões sete anos antes, me chamou para trabalhar numa agência de marketing viral, a moda daquela época.

Nessa e nas outras agências, eu tinha o repertório e falava a mesma língua (ou ao menos algo parecido) que aqueles caras brancos de classe média alta. Ajudou-me também ser mais velho do que eu aparentava (29 com cara de 22) e ter recém-casado com a (então) menina dos meus sonhos (e que, oh, tinha as mesmas referências que eu), ter saído da casa da minha mãe, me mudado para o centro de São Paulo e sem nenhuma possibilidade de voltar atrás. Foi o conjunto de circunstâncias perfeitas para que eu finalmente começasse a prosperar profissionalmente em tempo recorde, a ponto de montar a própria agência poucos anos depois.

A real é que se eu fosse o pretinho que ia pro samba ou que só tivesse amigos pretos, minha sorte seria outra. Não haveria as referências “certas”, não haveria as pessoas “certas” e nem as relações que serviriam como base para as oportunidades que surgiram ao longo dos anos, até hoje. A publicidade nunca foi um espaço acolhedor para quem cresceu num contexto diferente de quem consumiu a MTV e todas as referências brancas dos anos 1990 e cresceu com base nesses ideais. Eu mesmo já reproduzi essa lógica: em 2011, o primeiro funcionário da agência, um garoto preto, ganhou muitos pontos na entrevista porque ele escrevia artigos sobre indie rock. Conversando com outros amigos pretos do mercado publicitário com mais de 30 anos a história é a mesma: quase todos eram os únicos pretos do rolê.

Hoje as agências estão mais abertas. A questão da diversidade e da inclusão é um assunto e uma preocupação constantes, as redes sociais permitiram conexões mais amplas e, hoje, ser preto tem uma certa legalzice, apesar de todas as micro e macro violências. Ainda assim, nessa legalzice toda há também um corte, uma certa preferência por um tipo de gente que condense um certo conjunto de referências. Ainda assim, não é o pretinho do samba… Na publicidade, ainda muito branca e masculina, nossa missão é estabelecer conexões eficazes a partir de uma infinidade de símbolos culturais comuns às pessoas. Contudo, bem poucos são os símbolos bem-vindos neste canto suposto-sagrado de criadores.

Ian Black é fundador e diretor-executivo da New Vegas