Especialista em direito da comunicação, o jurista João Luiz Faria Netto assumiu em agosto do ano passado a presidência do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária). Aos 79 anos e ativo no seu escritório de consultoria, ele está presente no conselho da entidade desde a sua fundação, há 40 anos, data celebrada no fim do ano passado com o lançamento do livro Publicidade, Ética e Liberdade. “A liberdade de expressão comercial é o foco da instituição”, diz Faria Netto, lembrando que o Conar já analisou cerca de 10 mil peças nesse período. Confira a sua entrevista.

Alê Oliveira

Por que a autorregulamentação é tão importante para o mercado publicitário?
Por uma razão bem simples: os setores econômicos que se dispõem a se autorregulamentar estão assumindo compromissos com o processo civilizatório. Isso significa que estão se comprometendo a contribuir para que as coisas sejam sempre boas e melhorem. Ou seja, não desejam ficar candentes ou dependentes do setor público e querem encontrar saídas que sejam legítimas, além de tornar seus negócios melhores do que eram no passado.

Esse instrumento, que é materializado pelo Conar na atividade de propaganda, pode ser usado pelo setor público?
Sem dúvida nenhuma. Eu acho que algumas áreas públicas deveriam desenvolver esse tipo de recurso. Por exemplo, a de saúde, que poderia estabelecer processos standards para resolver procedimentos. Os protocolos informais são mais eficazes do que os protocolos formais.

E também ajuda a desburocratizar?
Não só isso, porque é um compromisso de quem está pactuando. Não é imposto; é desejado.

Na propaganda, a autorregulamentação atinge o anunciante público?
Indiretamente, quando o player público participa do setor comercial. O Conar só cuida de publicidade comercial. Porém, quando o poder público tem braço em segmentos como o bancário, distribuição de petróleo e energia, ele está participando junto com o setor privado de concorrência de mercado. Então tem o compromisso com a autorregulamentação.

Mas o anunciante público tem uma série de leis que monitoram o seu comportamento na mídia e como isso interfere no seu papel?
A legislação cuida da eficácia dele em relação ao grande anunciante, que é o Estado brasileiro. Mas tem de se adequar à codificação que a defesa do consumidor faz e que a autorregulamentação complementa através das relações, especialmente na publicidade.

Nesse caso envolve propriedade intelectual, autoral e da pertinência do conteúdo?
Certamente que sim, porque a questão autoral é de direito público. Mas é muito fácil resolver pela autorregulamentação do que depender dos tribunais para resolver pequenas questões autorais. Repito: o processo de autorregulamentação é extremamente civilizatório.

A publicidade teve papel visionário ao estabelecer parâmetros para a conduta ética desse segmento?
A publicidade deu lições ao Brasil que não foram entendidas. Em 1957, por meio de publicitários, se constituiu o primeiro grupo organizado no país que cuidou do sistema de autorregulamentação. Nesse momento, o país só tinha a autorregulamentação dos médicos e dos advogados. Essas atividades, porém, não tinham interesse comercial. Por isso a publicidade é pioneira ao realizar, há 61 anos, o primeiro congresso na sede da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no Rio de Janeiro, quando se estabeleceu a base do primeiro código de ética dos profissionais de propaganda, que é a origem da autorregulamentação do segmento. Esse congresso é tão importante para a atividade que resultou na Lei 4.680, em 1965, que regulamenta a atividade. É um exemplo que a publicidade deu ao país.

E por que continua sendo essencial?
Porque resolve conflitos que se fossem parar nos tribunais não teriam solução. No último mês de dezembro, o Superior Tribunal de Justiça resolveu uma questão que estava em andamento desde o fim do século 19: a propriedade do Palácio Guanabara, que pertencera à princesa Isabel. O processo judiciário é lento porque a demanda é muito grande. Veja a agenda de um ministro do Supremo Tribunal Federal! É uma carga de trabalho extremamente grande e incomparável a qualquer outro país. Precisamos ter braços na sociedade capazes de resolver questões antes de recorrer às instâncias do sistema judiciário.

Como a autorregulamentação trabalha com os aspectos subjetivos da publicidade?
Ela sempre parte da coisa codificada. Há 40 anos a publicidade tem um código inspirado nos ingleses, um povo habituado a não ter leis. Então, com o princípio de direito e tradição, estava claro que os anúncios tinham de ser verdadeiros e caracterizar pelo respeito, princípios morais e éticos. Que valem em qualquer tempo. Essa é a base do código brasileiro de autorregulamentação. A sociedade vai absorvendo mudanças e é importante acompanhar esses movimentos. Por exemplo, nada é mais disruptivo do que a vida atual com a internet, que muda todo dia. E nós temos de mudar para entender a relação de quem anuncia e de quem compra. Nosso papel é verificar que tipo de entendimento deve ser interpretado. O que é relevante é a manutenção dos princípios, que não mudam.

Há oportunismos em relação ao que a autorregulamentação oferece?
Com certeza. Eu lembro que, quando o Conar começou suas atividades, tinham muitas brigas fomentadas pelo embuste. O dia escolhido para se colocar uma peça no ar era a sexta-feira, quando já não havia mais tempo hábil para uma decisão. Isso desapareceu porque ficou claro que é um expediente de antipropaganda. Temos de ser claros e respeitadores com a ética de uma atividade que lida com o inconsciente e o desejo das pessoas.

Com que velocidade o Conar deve atuar na era da internet?
Em primeiro lugar, quero fazer um elogio à internet: ela tem ajudado a publicidade e, em particular, ao Conar. Ela permite o trabalho do Conar ser uma expressão “a qualquer do povo.” Gosto dessa expressão que vem das ordenações que Potugal nos deu: “a qualquer do povo.” Antes o cidadão tinha de escrever uma carta e aguardar um bom tempo por uma resposta. A internet propiciou a queixa imediata. Se me incomoda, eu vou à internet e reclamo para o Conar. Dá mais trabalho? Sim, mas é muito melhor.

O sistema de monitoramento do Conar acompanha o avanço da tecnologia?
O volume de monitoramento do Conar é inferior ao que a população reclama. Outro ponto sobre a internet é que ela permitiu a multiplicação das formas e dos grupos de comunicação. Essa multifacetagem é complexa e o Conar tem de acompanhar. Há uma figura nova formada pelos influenciadores digitais, que têm seguidores nos seus canais, que recebem propaganda de produtos e, portanto, são veículos. Consequentemente são tratados como tal e vêm respeitando as normas do Conar.

O ambiente digital aderiu ao Conar?
A internet não é uma nuvem. O sistema tem publicidade e respeita as responsabilidades vigentes.

O Conar é um ambiente censuratório?
Nunca dizemos não faça. Depois do fato analisado, recomendamos que tenha ou não tenha continuidade. É a grande recomendação brasileira, que se transformou em uma ordem de consciência. Nunca uma recomendação foi desrespeitada. Não há precedente em 40 anos. São 10 mil processos julgados nesse período. O meio de garantia da autorregulamentação no Brasil sempre foi a mídia. Os canais de comunicação exercem um papel importante e merecem elogios. Espontaneamente aderiram ao Conar. Para não dizer que nunca houve, apenas uma vez uma emissora de TV em regime falimentar, que não existe mais, colocou uma peça não recomendada no ar no seu momento da agonia. Algo inexpressivo na história do Conar.

Como a entidade lida com a globalização das agências de publicidade?
A ABA (Associação Brasileira de Anunciantes) merece elogios. É fundadora e parceira do código de autorregulamentação. Os grandes anunciantes brasileiros respeitam as decisões do Conar.

A criatividade tem limite?
Não, abolutamente não. E o Conar não é um instrumento para castrar o criador. Ele tem o direito de trabalhar até no delírio. Quem aprova o anúncio deve analisar se aquele trabalho pode ferir as condições que se estabeleceram como éticas e que devem ser respeitadas. Mas isso é um pós-julgamento. Em minha opinião, o criativo tem de delirar e ir até o limite para criar alguma coisa para quem vai anunciar, ser ótima para quem vai veicular e muito boa para aquele que vai receber a mensagem.

Como o Conar vê o comportamento reativo da internet?
McLuhan já dizia que a tecnologia é a extensão dos sentidos humanos. E maior do que a explosão da tecnologia é a internet, que pode fazer surgir uma nova civilização. A publicidade está entendendo muito bem esse momento. Estamos fazendo uma transição entre os meios tradicionais de maneira muito interessante. Sem dúvida, tudo está mais inteligente.