Sete fraturas e quatro mil imagens

 

A fotografia sempre teve um lugar importante na minha vida. Mas, há cerca de sete anos, a brincadeira virou um hobby e quase se transformou na minha segunda profissão. Gosto de fotografar pessoas pelas ruas, a chamada street photography. Já passei bastante tempo das minhas horas vagas clicando gente com atitudes marcantes, cenários interessantes, até que um dia percebi que precisava viajar para fotografar, e não aproveitar uma viagem para também fotografar. Foi assim que surgiu a viagem para a Índia, em 2014.

Ao lado do grande amigo Wilson Mateos parti para Nova Delhi, na época do Carnaval. O nosso roteiro incluiu cidades que representam muito do que as pessoas imaginam da Índia e do seu povo. Os fotógrafos Raghubir Singh e Henri Cartier-Bresson foram as nossas referências. Queríamos registrar a Índia clássica, mas o tempo era escasso. Elegemos, assim, o norte do país como foco. Além de Nova Delhi, os destinos seriam os estados de Uttar Pradesh e do Rajastão.

Ao desembarcar em Nova Delhi, levei um choque. Nenhum livro (dos vários que comprei para me preparar para a viagem), pesquisa na internet ou relato de amigos estavam aos pés do que vi. A cidade era tão cheia de informações que passei uns dois dias só para me acostumar: placas, luminosos, carros, motos, buzinas, lixo, cores, músicas, rezas, monumentos, animais, cheiros e gente. Muita gente. Todos os meus sentidos eram fortemente aguçados a cada esquina. Juntam-se a isso as diversas recomendações que todo turista recebe quando viaja para a Ásia, como nunca tomar água que não seja mineral, por exemplo. O início da viagem foi realmente impactante. Mas, depois de uns dois dias, já me sentia íntimo andando pelas ruas de Nova Delhi com uma Leica nas mãos.

Viramos a cidade do avesso, incluindo a Nova e a Velha Delhi. A parte nova é bem maior e tem grande influência britânica. Prédios altos, largas avenidas e lindas alamedas tomadas de árvores abrigam diversos monumentos e órgãos do Governo. Já a cidade velha (Old Delhi) é feita de ruas estreitas, muito mais gente, confusão, barulho e rickshaws com motor ou pedal. Essa parte da cidade rendeu algumas das melhores fotos.

Mas o melhor ainda estava por vir. E eu nem imaginava o que nos esperava. Entramos em um ônibus rumo a Agra, a cidade do Taj Mahal. Nessa cidade pudemos conhecer, entre outros lugares, o enorme e deslumbrante mausoléu de mármore que o imperador Shah Jahan construiu para a sua mulher. A parte mais interessante, surpreendentemente, estava do lado de fora. Agra parece ter saído de um acidente atômico. Fora a grande atração turística e o Red Fort, ela é muito degradada. De maneira estranha, foi ali que comecei a entender o jeito indiano de viver. Explico: no dia seguinte, depois de fotografar o nascer do sol atrás do Taj Mahal, local por onde passa um rio e é cenário de belas imagens, andamos até um vilarejo. Mesmo nas partes mais pobres e degradadas da cidade, sem esgoto nem água encanada, o aspecto geral era de muita pobreza, mas, além de as casas serem limpas e bem cuidadas por dentro, as pessoas foram bastante acolhedoras. Essa descoberta encaixou mais uma peça do quebra-cabeças indiano na minha tentativa de entender aquele país.

Do vilarejo, seguimos para a parte do rio, onde homens e mulheres lavam as suas roupas. Nesse local, algumas pessoas nos pediram dinheiro para serem fotografadas. Concordamos em pagar um valor predefinido e passamos horas explorando o local. Quando terminamos e fomos acertar o montante acordado, uma surpresa: o “líder” do grupo se aproximou para dizer que o combinado não valia mais porque ficamos muito tempo. Após muita argumentação, ele concordou em manter o preço inicial. E esse foi mais um lugar que deixamos levando ótimas fotografias.

A próxima parada foi em Jaipur, a capital do estado do Rajastão, onde fortes e palácios chamam a atenção e declaram ainda mais acentuadamente a diferença de classes sociais. Por um pedido de um marajá, a cidade foi pintada de rosa no século 19 para a visita do príncipe Albert. Boa parte continua rosa até hoje, o que a deixa bastante peculiar. Em nossa incursão ao maior mercado (a céu aberto) da cidade, aconteceu o que eu menos contava: fui atropelado por um carro. Já contei que o trânsito da Índia é completamente fora de controle? E ainda é mão-inglesa. Ao iniciar a travessia de uma rua movimentada e com a confiança de quem já havia aprendido os macetes de como se virar no meio dos carros, um deles passou em cima do meu pé esquerdo. A câmera caiu para um lado, eu para o outro. O motorista saiu aos berros do carro, repetindo sem parar, em inglês: “A culpa foi dele, a culpa foi dele”. Pessoas saíram de diversas lojas para ver o que acontecia, transeuntes pararam. Muita gente quis ajudar, o que demonstra bem o espírito acolhedor do indiano. Fui levado ao melhor hospital de Jaipur, segundo os locais. Lá, no entanto, percebi que não havia nada de leite com pera. Era gente para todos os lados. Assim que entrei fui levado para uma sala onde uma enfermeira sacou uma injeção. Entrei em pânico: “injeção pra quê?”. A explicação foi convincente: “para todas as infecções que você pode imaginar”, disse ela. Pensei nas vacas, nos ratos, nos cavalos e nas pessoas usando as ruas para qualquer tipo de necessidade. Aceitei a injeção na mesma hora. Depois de um raio X, o médico receitou dois remédios, uma tornozeleira e uma bengala. Pedi para fazer uma ressonância, pois o meu pé estava muito inchado e dolorido. “Se continuar inchado, daqui dez dias você volta e eu faço. Agora, você precisa deixar o seu corpo reagir”, respondeu o doutor. Rodei cinco bairros buscando os remédios em farmácias, que tinham mais ervas do que comprimidos, e passei uma tarde inteira na cama do hotel. No dia seguinte, saí novamente para fotografar e rapidamente achei uma maneira de conciliar a bengala, a dor e a câmera. Foi assim que chegamos ao último destino.

Além de ser uma região alegre e ensolarada, com muito do colorido típico indiano, Jodhpur é conhecida como cidade azul, fama explicada pelo fato de ter parte das casas pintadas dessa cor. Mais mercados, fortes e palácios nos esperavam. Mais gente disposta a conversar, a ser retratada e a dividir um pouco de suas crenças. Já com a viagem chegando ao fim, pegamos um jipe em direção a um vilarejo distante e de difícil acesso. Conhecemos um grupo de locais que vivem de maneira realmente simples, cozinham no fogo de chão, tudo bem básico. Estava quase na hora em que começaria a cerimônia do ópio. E lá vimos o real desprendimento material em favor da religião. Aquelas pessoas sobrevivem de maneira completa e serena na total pobreza. Essa manhã resume muito do que descobri em toda a viagem e, claro, inspirou algumas das melhores fotos.

Com sete fraturas ocultas no pé esquerdo e mais de quatro mil imagens, cheguei ao Brasil achando que havia começado a entender aquele país. Hoje, tenho a certeza de que preciso voltar para conhecer a região Sul e me certificar de que realmente entendi alguma coisa a respeito da Índia.