Tarde negra

Toda vez que eu ouço falar nos problemas de gestão e empresas familiares, que eventualmente podem se transformar em cabide de emprego para muita gente cuja única razão de estar em cargos de direção é o sobrenome, me lembro de uma história que ocorreu há muito tempo. Havia no Rio de Janeiro uma grande loja de departamento, cuja administração era tão familiar, tão familiar, que o nome do estabelecimento era exatamente o dos dois sócios que tocavam o negócio juntamente com uma penca de filhos, cunhados, primos, genros e noras. Qualquer um que já conviveu em uma empresa assim conhece o esquema. O diretor de marketing é filho de um, a diretora de decoração é filha do outro, a compradora-sênior de moda é mulher de outro filho e assim por diante.

Como dizia um amigo meu, é incrível o talento nato de parente de dono de empresa para marketing, arte, propaganda e moda. Sobrenome ilustre tem pavor de departamento de pessoal, logística, controle. Maldades à parte, era assim que funcionava a empresa. E foram dois jovens diretores-parentes que nos chamaram para prepararmos uma imensa campanha de propaganda buscando uma renovação da imagem das lojas, considerada meio ultrapassada. Investimos tudo na empreitada, a começar por uma pesquisa em profundidade para podermos fazer um diagnóstico criterioso dos problemas de imagem da empresa. Gastou-se um mês de trabalho, daí sugerimos até uma mudança na logomarca.

Contra a opinião irada do nosso pessoal de administração, torramos uma nota preta na campanha, imaginando a suprema glória de influir decisivamente no sucesso empresarial do cliente. Daí no dia marcado para a apresentação da campanha tínhamos uma fantástica quantidade de peças para mostrar, incluindo um estudo de logotipia e programação visual. Éramos uns dez na sala de reunião, nervosos como noivas, loucos para mostrar à diretoria como nós, os gênios da comunicação, iríamos garantir o sucesso duradouro e permanente para a empresa. Os diretores (filho e genro de um dos fundadores) estavam tão ansiosos quanto nós. Daí entrou a plateia – o resto da família -, capitaneada pelo presidente, o dono, o chefão e depois de algumas apresentações, troca de cartões e outras amabilidades, deu-se início à função. Naquele tempo não havia Power Point e a apresentação foi feita com transparências, uma longuíssima introdução, com dados de pesquisa, exemplos de casos semelhantes no mundo inteiro e um puta planejamento.

Depois, mostramos a campanha, toda ilustrada pelo genial Milton Sobreiro, títulos inteiramente marcados com Letraset, ou seja, luxo, riqueza, beleza e criatividade. E o dono, em silêncio, fumava um enorme charuto com cara de poucos amigos. Falamos horas, tocamos jingles, contamos piadas. Ao fim de tudo, fez-se o silêncio. Todo mundo esperou o patrão falar. E ele deu uma tragada, suspirou e perguntou: “Quem foi que pediu esta merda?” O filho gaguejou: “Nós, papai”. O diretor-presidente olhou para mim e concluiu com voz cansada: “Bem, os senhores mandem a fatura para este cidadão aqui. Desculpem o tempo que ele fez os senhores perderem, mas eu não tenho culpa de ter um débil mental deste como filho. Não pretendo gastar com propaganda, mudar a marca da minha empresa nem modernizar porra nenhuma. Enquanto eu estiver vivo – e apontou o charuto para o filho – esta besta aqui não vai mudar nada. Depois ele vai falir à vontade”.

O outro diretor resolveu ajudar: “Doutor fulano, eu acho que…” e foi interrompido pelo patrão-sogro: “Olhe aqui, fulaninho, cale a sua boca e só abra quando conseguir sustentar minha filha, me der um neto ou fizer alguma coisa que preste além de gastar meu dinheiro”. Levantou-se, colocou a mão no meu ombro e continuou: “Tenho pena dos senhores. Levaram a sério estes dois pústulas irresponsáveis. O máximo que eu posso fazer é descontar das retiradas deles algum dinheiro que diminua o prejuízo. Minhas desculpas. Se algum dia eu enlouquecer e resolver mudar tudo aqui na casa eu os chamarei. Muito obrigado”. E foi embora. Depois de alguns anos ele morreu. E o filho faliu. Como ele previra.

Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor