Tradutores da história

Entrevista da semana é com o tradutor e intérprete de mandarim-português Andre Sun

Um vídeo de um intérprete entre os presidentes da China e da Rússia viralizou este ano, destacando a relevância da profissão. É sobre esse trabalho multifuncional, cada vez mais requisitado no país com a intensificação das relações Brasil-China, que o tradutor e intérprete de mandarim-português Andre Sun fala a seguir.

Com mais de 20 anos de experiência, ele é mais do que uma peça-chave nesses diálogos. Ao intermediar traduções entre presidentes como os da China e do Brasil, ele ajuda a construir a própria história contemporânea global.

Qual a sua percepção sobre a demanda de tradutores de mandarim?
Eu estou no Brasil há 11 anos. Desde que vim morar aqui trabalho como tradutor e intérprete. E sempre houve procura por esses serviços. Essa demanda sofreu uma pequena queda no início da pandemia, mas durou cerca de um mês. Depois voltou tudo de forma online.

E como se deu essa mudança?
Era uma modalidade nova para mim. Havia um colega que comentava: ‘Agora dá para traduzir por aplicativo’. E eu pensava: ‘Ué, como assim?! Sem um intérprete presencialmente para trabalhar? Será que isso funciona?!’. Eu estava incrédulo, mas durante a pandemia isso prosperou – a nossa comunicação com o mundo era por celular, por computador. E depois da pandemia, principalmente depois do levantamento das restrições de viagem internacionais, passei a ter muita demanda, muito mais do que eu atendia anteriormente.

Você conseguiria dimensionar esse aumento de demanda?
Posso dizer que depois da pandemia minha agenda ficou bem cheia alguns meses. Agora, para dar uma ideia, este mês (agosto), que é um mês tranquilo, eu consegui trabalhar todas as semanas pontualmente: dois dias eventos, outra semana outro evento... Mas em um mês “cheio”, minha agenda da semana fica cheia também, com quatro dias e até cinco dias preenchidos. No período da pandemia, eu fiquei dois anos sem viajar. Agora estou viajando direto. Ontem fiz um “bate e volta” a Brasília.

É possível dizer quais estados concentram mais as suas demandas de trabalho?
São Paulo, com certeza. Mas tem Brasília, que também é um grande destino para mim, onde geralmente há as visitas de governo. E este ano, por causa do Brics (o chamado grupo de economias emergentes do Sul Global, formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e no ano passado por causa do G20 (fórum internacional que reúne 20 grandes países para debater e promover cooperação para os desafios globais) houve bastante demanda no Rio de Janeiro também. Essas são as três cidades que têm mais demandas, sejam por eventos comerciais, conferências econômicas, políticas... Mas esporadicamente há demandas em outros estados, o que me ajudou a conhecer bastante o Brasil.

Você cobre muitos eventos, quais os tipos que mais procuram seu serviço?
Nos últimos anos, acho que houve mais demanda de eventos governamentais, justamente pelos que mencionei: Brics, G20, agora a COP (COP30 – convenção das Nações Unidas para discutir e tomar medidas referentes a questões climáticas).

Você mencionou a questão das ferramentas de tradução. O crescimento delas mudou algo na sua atividade?
A principal mudança é o uso de aplicativos para reuniões online. O Zoom, por exemplo, até desenvolveu a função de tradução simultânea, ou seja, conseguimos traduzir como se estivéssemos em uma cabine de tradução em um evento presencial. Quase não há nenhuma diferença no sentido técnico. Eu e um colega ficamos na cabine virtual e quem participa da reunião ouve nossa voz em um canal como em uma reunião presencial. O uso de IA (inteligência artificial) pode ajudar nas traduções por meio do ChatGPT. Em alguns eventos oficiais de chineses, a gente consegue receber com uma certa antecedência alguns textos com as falas. E aí conseguimos traduzir com o uso dessas ferramentas. Mas quando não temos isso, vai a inteligência humana mesmo (risos). Outra coisa que fazemos é estudar com antecedência sobre o assunto que será tratado, porque às vezes os temas são bem específicos. Algumas vezes é até necessário criar um glossário para servir como ‘cola’. Traduções médicas, por exemplo, é outro mundo, embora no geral não tenha nada que não se possa traduzir.

Você já teve algum momento constrangedor em que não entendia a pessoa que estava traduzindo?
Já aconteceu, acontece, mas nunca houve um momento em que eu tenha ficado congelado. E espero que nunca aconteça! A tradução simultânea é uma atividade multifuncional que exige exatamente atenção na fala do outro, na escuta para compreender e traduzir ao mesmo tempo o pensamento de quem está falando. E na tradução do mandarim para o português você perde muita informação, porque a ordem da construção da frase é contrária. O intérprete precisa esperar o desenvolvimento da frase mais um pouco para poder traduzir a ideia do que está sendo falado. Então, imagine ter de pensar sobre o que já foi dito, enquanto a pessoa continua falando o que você tem de traduzir. É um desafio muito grande. E ainda tem as expressões culturais, gírias, palavras que não são comuns e para as quais não se acha uma correspondência tão rapidamente. Mas nessa hora, o intérprete precisa manter a tranquilidade e seguir prestando atenção para não perder o resto da fala e arruinar a produção do evento.

Andre Sun, tradutor de mandarim-português (Divulgação)

Você não consegue contextualizar na continuidade da conversa?
É um pouco complicado, porque não tem esse espaço para desenvolver ou recuperar o que não foi falado. Não há tempo. Quando é uma tradução consecutiva, sim – a pessoa fala e depois você traduz, aí é possível recuperar alguma coisa. Mas em uma tradução simultânea
não tem jeito.

A questão da língua chinesa tem ainda a complexidade dos caracteres. Como você lida com isso quando tem de traduzir algo como uma campanha publicitária, a divulgação de alguma ação de marketing?
Eu já traduzi algumas peças, anúncios por escrito para serem apresentados na China. Às vezes, há jogos de palavras ou a chamada ‘piada interna’ que não vão fazer sentido lá, coisas que o público brasileiro entende perfeitamente, mas não faz o mínimo sentido para outras culturas. Nesses casos, às vezes, eu aviso ao cliente que aquilo não serve por lá. Quando é possível, eu já faço as adaptações, porque eu trabalho com a tradução; não com a criação.

Poderia dar algum exemplo?
Sim, como os nomes próprios. Eles não têm tradução. Geralmente a gente faz uma transliteração dos nomes com cada um dos fonemas dos caracteres. Seu nome é Mirela, então seriam fonemas que representassem o mi o ré e o lá. Só que como cada ideograma tem seu significado, essa combinação cria outro significado. O meu nome  escrito em pinyin (sistema de romanização dos caracteres chineses) é Yu Yaqin, criado exatamente porque a transliteração ficaria sem graça, e como são três notas musicais – mi, ré e lá – eu queria que tivesse alguma relação com isso.
Yu é o sobrenome. Ya é elegância e o qin se refere a um instrumento musical. Todo instrumento de corda é qin, inclusive piano é algo como corda de aço. Esse nome é um símbolo do letrado, de sofisticação e erudição. Criou um significado interessante.

Como se dá o processo de confidencialidade nesse trabalho, uma vez que você deve ouvir muita coisa relacionada a negócios, política etc.?
Sim, principalmente eventos comerciais. Nas reuniões políticas de alta cúpula existe uma discrição, no mínimo. Nunca me pediram para assinar nenhum documento, mas eu acho que isso faz parte da ética da profissão, até porque atuar como uma ponte de ligação entre os dois lados é um trabalho de grande confiança. O erro meu pode arruinar toda uma negociação

Você já chegou a traduzir o encontro de algum presidente?
Sim, o do presidente Lula com o presidente da China, Xi Jinping. A primeira vez que acontece eu acho que a pressão é mais psicológica. Igual aquele meme do tradutor. Toda a conversa ou desconversa depende daquela pessoa que está fazendo a interpretação. E o chinês é muito exigente com essa tradução política e isso também cria uma certa pressão: ‘ah, será que estou usando a palavra certa, será que vão entender errado?’. Mas geralmente o conteúdo em si não é complicado, porque não tem nenhum vocabulário técnico ou muito difícil. É normalmente conhecimento das relações internacionais, relações bilaterais. O conteúdo é relativamente fácil.

Como esses momentos lhe tocam, uma vez que são encontros históricos e você acaba sendo parte essencial nisso?
Quando o trabalho começa, nem pensamos nisso. Certamente é um momento importante. Mas há tantos protocolos para seguir, tenho tanta coisa na cabeça para processar e ter atenção que não fico pensando sobre o que estou vivendo naquele momento. Depois que passa, sim, dá um certo orgulho de ter estado ali. No entanto, no momento mesmo, tenho de manter a discrição, tranquilidade, ficar calmo, inclusive, porque um bom trabalho depende disso.

Tem algo curioso que você poderia contar sobre esses encontros do Lula com o Xi Jinping?
Eu já tinha participado da primeira visita do Lula à China. Achei aquela visita mais protocolar, mais fechada. Na verdade, continua sendo, mas reparei certa mudança. Hoje percebo que eles desenvolveram uma certa amizade e que, de fato, há uma proximidade entre os dois.

E sua família tem orgulho disso? Eles têm noção do seu papel em um momento como esse?
Não é como os pais brasileiros que são mais entusiasmados: ‘Ah, meu filho, não sei o quê!’ (risos). Meus pais, como pais chineses, não demonstram muita emoção com essas coisas. Eu chego em casa, comento alguma coisa, eles perguntam mais alguma coisa, mas veem como algo normal. Mas houve um momento, na visita do Lula em Pequim, que um amigo tirou uma foto minha com os dois presidentes e me mandou. Eu compartilhei com meus pais e senti que eles ficaram orgulhosos. Minha mãe tinha um encontro com ex-colegas de escola e acabou mostrando a foto a eles – virou ‘estrela’ com aquela foto. Meu pai é muito discreto, mas eu senti que ambos ficaram felizes.

Dentro da importância da linguagem correta e da comunicação, o que você diria a empresários brasileiros na hora de se comunicar com empresários chineses?
Eu acho que muitas vezes empresários brasileiros ou estrangeiros em contato com chineses ficam preocupados e têm, às vezes, até medo de fazerem algo errado. Eu acho desnecessário. Os chineses têm bastante tolerância, embora sejam mais protocolares. O chinês entra numa sala e sempre pensa onde deve se sentar, onde ficar, qual o protocolo... Já os brasileiros são mais informais, já puxam a cadeira e dizem: ‘Senta aí’. Mas o importante é o tratamento com respeito com a cultura deles. Tanto o chinês quanto o brasileiro são povos de alto contexto.

O que isso significa?
Alguém lhe oferece algo, mas você responde não obrigada, embora na verdade queira. O não é uma recusa por educação, hábitos culturais etc., mas na verdade você quer aquilo oferecido. O chinês também tem um pouco disso. Um brasileiro lhe oferece uma proposta, o chinês responde de forma evasiva e fala que vai pensar, mas às vezes só esse comportamento já é uma recusa. No entanto, os brasileiros ficam ali ansiosos, achando que vão fechar um acordo. A teoria do trabalho de tradutor já fala que dois povos de alto contexto, mas de contextos diferentes, são mais complicados de se comunicarem. O chinês sempre fala por contexto, mas o brasileiro por ter outro contexto vai entender de outra forma. Por isso, é preciso se falar mais diretamente sobre sua intenção. Dizer exatamente o que se quer.

A tradução é essencial para deixar isso claro?
Sim, eu deixo isso claro, porque senão um deles fica sem entender nada. É a chave para a boa comunicação. É aquela coisa, o brasileiro se despede chamando para o outro ir em sua casa, mas isso pode não significar nada.