Três crônicas e uma crítica

Semana passada escrevi histórias de hóspedes-mala que se transformam em pesadelo para seus anfitriões. Faltaram duas, que faço questão de contar, antes de mudar de assunto e ir para coisas mais sérias. A primeira aconteceu em Los Angeles, com um diretor de cinema brasileiro que se alojou na casa de um casal amigo. Numa manhã de domingo, o hóspede acordou de madrugada, querendo fazer uma surpresa para os donos da casa, incrementando o breakfast, saiu de mansinho, tirou o carro da garagem e deu a ré, pensando dar um pulinho numa delicatessen muito famosa que havia por perto. Pois não é que o infeliz atropelou a dona da casa, que estava tomando um solzinho estendida no caminho diante da garagem? Ela sobreviveu, mas o atropelador não tem nenhuma dúvida de que parte dele deixou de existir naquela manhã.

A próxima é de minha responsabilidade. Uma vez fiquei hospedado sozinho no apartamento do Ivan Marinho, em Paris, e descobri que a televisão não funcionava. Querendo dar uma de bom-moço, providenciei imediatamente uma televisão nova, zero-quilômetro, e troquei pela antiga, achando que são dessas pequenas delicadezas que se faz um bom hóspede. Acontece que na noite em que tinha levado a televisão velha até o depósito de lixo, tive um pesadelo terrível. Sonhei que estava de volta ao Rio e Luciana Marinho (filha de Ivan), aos prantos, me contava que a TV antiga não poderia mesmo funcionar, pois seu interior tinha sido substituído por um cofre, onde dólares e joias estavam disfarçadamente guardados.Acordei banhado em suor. Até hoje Luciana lembra de ter recebido em plena madrugada um telefonema meu de Paris, perguntando sobre a possibilidade de haver no apartamento uma TV-cofre. Só depois que eu tive a garantia de que a porcaria da televisão não funcionava porque estava quebrada pude dormir em paz. Passando para outro assunto, me sinto obrigado a escrever o que se segue:

O melhor livro lançado este ano chama-se Enquanto houver champanhe há esperança, de Joaquim Ferreira dos Santos, uma biografia de Zózimo Barroso do Amaral. Darei detalhes sobre essa aparentemente irresponsável afirmação em próximos textos. Por enquanto, creia em mim. Começo por repetir uma cobrança que já fiz pessoalmente ao Joaquim: esse livro tem me tirado o sono, tem me feito rir ao ponto de despertar minha mulher, tem me trazido uma imensa inveja dos que sabem escrever. Não creia na ideia que estou falando apenas da biografia de um grande jornalista, o Zózimo. Não entre nessa simplificação. Esse livro é parte da história de uma sociedade, da cidade. Em suas linhas e entrelinhas e as lantejoulas do bem escrever, Joaquim é um Machado, um Eça. Um tratado de sociologia. E também uma aula de texto. Se você quer conhecer uma figura ímpar do jornalismo, quer conhecer uma época importantísssima na vida do Rio e – sobretudo – se quiser saber como se escreve um livro, corra para uma livraria. Compre Enquanto houver champanhe há esperança e eu lhe garanto a felicidade.

Encerrando, me permita contar que de uns tempos para cá, na Cinelândia, uma cantora oferece um recital a partir das seis e meia da tarde. É acompanhada de um violonista e possui um equipamento de som que, se não compete com a parafernália do Rock in Rio, faz barulho parecido. Seu repertório é eclético, indo de Piaf a Chico Buarque, passando por Gonzaguinha, Gershwin e Cole Porter. Tenho inveja dela. Consegue destruir qualquer uma dessas músicas com altivez. Seu forte é Hymne a l’amour, que deve fazer Piaf pedir novamente que o céu lhe caia sobre a cabeça. Na escadaria da Câmara, os moradores de rua se ajeitam para vê-la e ouví-la. O que se perde em música, ganha-se em poesia: alguém cantando e outro ouvindo embevecido. Na cabecinha da cantora, aquelas pessoas andrajosas devem ser como a plateia do Olympia. E os aplausos são generosos, infelizmente traduzidos em poucas moedas. O dinheiro anda curto. Quando chegou lá pelas nove da noite tive de ir embora. Ainda tive tempo de ouvir seu último recado: Non, je ne reregretterien!. Tive vontade de gritar: Bravo! Mas me contive.

Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor