TVs miram plataformas, diz presidente da Associação Internacional de Radiodifusão

Paulo Tonet Camargo  foi eleito para presidir a entidade no fim do ano passado

Eleito em dezembro de 2023 para presidir a Associação Internacional de Radiodifusão (AIR), entidade que congrega 17 mil emissoras comerciais de rádio e TV nas três Américas, por dois anos, o executivo Paulo Tonet Camargo tem o desafio de buscar remuneração das plataformas digitais para o ecossistema.

Ele, que já presidiu a Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão), que tem 3,2 mil afiliadas, começou carreira em 1992 como advogado e até 2011 atuou no grupo RBS, de onde saiu para assumir o cargo de vice-presidente de relações institucionais do Grupo Globo. TV conectada, inteligência artificial, regulação e direitos autorais estão na pauta.

No caso da IA, projeções apresentadas por especialistas durante a NAB Show de Nova York, em outubro passado, indicam que, em 2027, vai colaborar em processos de produção.

Quais são os desafios do trade de radiodifusão neste momento?
A evolução tecnológica coloca a televisão e o rádio em novos patamares e temos de acompanhar de maneira muito ágil este desenvolvimento. A radiodifusão mundial terá muitos desafios nos próximos anos, e a AIR, como sempre, deverá estar na vanguarda dessas discussões. A AIR é o ambiente onde a radiodifusão americana discutirá tais inovações na busca das melhores soluções que atendam aos diversos países do continente. A TV conectada à internet se descortina como uma oportunidade de novos negócios e os comitês de tecnologia trabalharão na troca de informações e experiências entre sócios individuais e institucionais para buscar as melhores oportunidades para nossas emissoras. Não podemos esquecer da disrupção que novos players de midia, verdadeiros gigantes globais, trazem diariamente ao mercado. Atualmente, talvez o maior problema seja a assimetria regulatória em relação à radiodifusão. Não é possível a convivência com a total ausência de responsabilidade das plataformas digitais, que distribuem conteúdo, monetizando esta atividade sem assumir as consequências dos danos que possam causar, seja de maneira direta a pessoas e empresas, ou difusa para toda a sociedade. Hoje, tudo isto se agrava com o desenvolvimento da inteligência artificial, que ameaça nossos conteúdos e exige de nossos países uma tomada de consciência do risco que contém. As plataformas já solapam a imprensa profissional pela captura de seus conteúdos e do mercado publicitário. Agora, existe o risco de criarem conteúdos artificialmente treinados em cima do trabalho que fazemos, sem observar quaisquer critérios éticos, de investigação jornalística ou responsabilidade editorial. Este será um tema central para a AIR. Há ainda uma tarefa incessante de nossa instituição, que é a defesa intransigente da liberdade de expressão.

Quais são seus planos para a sua gestão?
A tarefa não é fácil, mas a AIR poderá esperar o melhor de mim na defesa dos temas da radiodifusão. A prioridade será, de um lado, a defesa incondicional da liberdade de expressão, de informação, de criação e da imprensa livre. Essa sempre foi a nossa bandeira e continuará sendo, principalmente num momento em que vemos tantos movimentos antidemocráticos na América Latina. Por outro lado, não podemos abandonar uma das questões mais importantes: é assegurar que o conteúdo produzido seja remunerado pelas plataformas de internet. A atuação desses players, que se valem do mercado publicitário com a ausência de controle editorial, inviabiliza a competição saudável com as empresas de mídia. Os grupos técnicos estão trabalhando em um documento, que deve ser finalizado em breve. Após esta etapa, pretendo convocar uma reunião extraordinária, que será realizada nos Estados Unidos e tendo a NAB como anfitriã, quando pretendemos aprovar uma sugestão de base para a legislação de plataformas digitais nas Américas. Será um documento de referência que vai se basear em princípios como responsabilidade e transparência na questão da publicidade. Não podemos deixar que as plataformas de internet trafeguem publicidade paga sobre atos antidemocráticos, como ocorreu no 8 de janeiro, por exemplo. As empresas de internet não se submetem ao modelo de autorregulação que os grupos de comunicação utilizam no Brasil. Aqui, uma decisão do Conar é acatada imediatamente por qualquer um de nós, mas não pelas big techs. Não pode ser assim, é preciso que haja princípios claros.

As TVs abertas continuam tendo o protagonismo para as marcas anunciarem?
No contexto das três Américas, este protagonismo é inegável. Diferentemente de outros mercados, como o europeu, por exemplo, nenhum veículo tem capacidade de transmissão e capilaridade como a radiodifusão, atingindo de forma livre e gratuita toda a população dos diversos países do continente. Não podemos esquecer que o conteúdo digital depende de pagamento. Sem uma rede de suporte, e esta é onerosa, não há acesso a conteúdo.

Elas concentram o maior volume de recursos dos anunciantes?
Sim. As TVs abertas continuam extremamente relevantes porque demonstram aos anunciantes os maiores benefícios para levar a mensagem tanto sobre marca como sobre produto. E isto de forma auditada, de forma independente e, portanto, com credibilidade.

Como as TVs se adaptaram ao digital do ponto de vista de negócios?
A TV não é antagônica à tecnologia digital. Ao contrário. Se considerarmos as evoluções tecnológicas, historicamente o setor esteve na vanguarda. Portanto, a nova tecnologia é uma evolução para novas oportunidades para todo o mercado. Hoje nos debruçamos todos sobre a próxima geração de televisão, a TV 3.0. Será, sem dúvida, além de uma nova experiência ao consumidor, também uma grande oportunidade para novos negócios, aumentando a capacidade da TV de oferecer soluções aos anunciantes, alcançando a audiência de forma jamais vista, inclusive direcionada.

E quais as demandas institucionais mais prementes para o trade?
A cada ano fica mais claro que a radiodifusão não apenas é atual, mas necessária. Os eventos de desinformação que dominaram o mundo em processos eleitorais e durante a crise sanitária global apenas reforçaram nossa posição de compromisso e relevância. Dito isso, está evidente que o futuro do setor passa por ações que busquem simplificação regulatória, redução das assimetrias, como já observamos, e um equilíbrio concorrencial que permita que as emissoras continuem a investir em conteúdos e tecnologia.

Como as transformações estão afetando o meio TV como um todo?
As TVs estão sempre alinhadas com as transformações da sociedade e da tecnologia, buscando levar informação e entretenimento atrativos aos consumidores. Nossas audiências, aliás as únicas efetivamente auditadas, demonstram isto. A TV por si só ou seus desdobramentos digitais são um ambiente confiável para marcas e anunciantes. Usamos as transformações em benefício do mercado e dos consumidores.

Quais as implicações positivas e cuidados com a inteligência artificial?
O rádio e a televisão têm acompanhado de perto toda a evolução tecnológica dos nossos tempos e se adaptado muito bem às mudanças e novidades que surgem a cada dia.  Setor altamente regulado, a radiodifusão é responsável por todo conteúdo produzido. A popularização da inteligência artificial (IA) exige dos países uma tomada de consciência do risco que o seu mau uso pode ocasionar. Após as inúmeras transformações pelas quais o rádio e a TV passaram ao longo das últimas décadas, os meios devem se preparar para essa nova era de mudança, talvez a maior de todas. Projeções apresentadas por especialistas durante a NAB Show de Nova York, em outubro, indicam que, em 2027, a IA poderá colaborar em processos de produção de programação local, com conteúdo multiplataforma personalizado e dinâmico, além das ferramentas de audiência e de investimento publicitário. A grande preocupação é o avanço desregulado da IA, especialmente por causa da necessidade de proteção dos direitos autorais dos radiodifusores. A palavra-chave é responsabilidade. Este será um dos focos de atenção da AIR.

O avanço tecnológico está sendo benéfico para o meio TV?
Só a migração da TV analógica para a digital, para exemplificar, aumentou a capacidade de alcance do meio de maneira significativa. A TV 3.0, que se apresenta como novo patamar tecnológico, vai propiciar, sem dúvida, novas possibilidades de negócio a todo o trade.

Como?  Na geração de conteúdo?
Sem dúvidas. A nova geração de televisão associada às ferramentas de inteligência artificial generativa contribuirá para conteúdos inovadores, interativos, imersivos e acessíveis.

E nas possibilidades comerciais?
Além da convergência entre broadband e broadcast permitir ofertas comerciais hoje limitadas, novas soluções tecnológicas serão disponibilizadas aos anunciantes, promovendo um mercado de mídia direcionada, bem como de vendas de produtos e serviços para a audiência.

E no alcance?
O que o usuário quiser, ou seja, na tela grande ou pequena. Com a TV 2.0 saímos das salas e chegamos aos veículos e alguns terminais móveis. Já estamos disponíveis em plataformas de streaming. O futuro é que nosso alcance está não apenas no ar, mas no online e em todos os celulares garantindo sinal aberto e gratuito onde quer que o telespectador esteja.

E na segmentação?
A radiodifusão atinge todas as classes sociais, todos os dias e nada indica que isso vá mudar. A nova geração vai potencializar bastante a segmentação ao permitir uma flexibilidade para emissoras, anunciantes e usuários. A TV 3.0 permitirá inclusive segmentar geograficamente conteúdos e publicidade tornando mais efetiva a comunicação.

E a relação com as plataformas?
Vários países já se debruçaram sobre este tema e alguns até legislaram com muito êxito. Na questão de remuneração dos conteúdos jornalísticos, que induz a acordos entre as plataformas e os produtores, talvez o melhor paradigma seja o da Austrália, que influenciou o Canadá e debates em outros países como no Brasil. Para se ter uma ideia, não houve sequer necessidade de acionar qualquer dispositivo de arbitramento porque sempre se chegou a bom termo. Em matéria concorrencial, a Europa mostrou o caminho. Aprovou recentemente uma série de medidas por meio da Lei de Mercados Digitais, que trata grandes plataformas digitais, os chamados gatekeepers, com regras especificas de acordo com seu poder de mercado. Quanto à responsabilidade, me parece um conceito mais óbvio. Não há qualquer setor empresarial que lucre com uma atividade econômica sem responsabilidade sobre produto ou serviço que oferece ao consumidor. Neste caso não é diferente. As plataformas oferecem serviços de distribuição de conteúdo de informação e entretenimento. Para sustentar o modelo, vendem espaços ao mercado anunciante. Idêntico ao que fazemos. É razoável que tenham responsabilidade sobre os conteúdos distribuídos com os quais rentabilizam. E não se invoque a falsa premissa de que isto iria ferir a liberdade de expressão porque liberdade e responsabilidade são faces de uma mesma moeda. Assim moldou a nossa Constituição, seguindo o que concebeu qualquer nação civilizada. Nós, radiodifusores, somos responsáveis pelos conteúdos de entretenimento e informação que distribuímos. Diminuir esta distância regulatória é uma tarefa sobre a qual devemos nos debruçar.