Uma torre que faz pensar

Em uma madrugada de novembro de 1980, despertei dentro da cabine do trem que me levava de Viena a Veneza. Ao espiar para fora, o luminoso da estação me mostrava que estava em Pisa. Ainda com os olhos pesados de sono, considerei seriamente saltar para conhecer a torre inclinada. Mas às 3 da madrugada? Tornei a adormecer.

Voltei à Europa algumas vezes, mas a Itália sempre esteve fora do roteiro. Nas ocasiões em que conversei com quem visitara Pisa, os comentários costumaram passar certa decepção: ou a torre era mais baixa ou menos inclinada do que o imaginado. Como a Torre Eiffel e o Big Ben, a Torre de Pisa sempre encantou a quem teve a chance de folhear uma enciclopédia quando criança.

A atual e longa estada em Veneza me facilitou a vida, finalmente, para tirar a teima sobre se a tal torre pendente é ou não é aquilo o que me parecia na infância, estampando livros de geografia ou folhinhas de casas de ferragens. Cheguei de carro e uma pegadinha do GPS me levou a um monumento cor de tijolo e de traços retos no meio do nada, a que o aplicativo atribuiu o nome de Torre de Pisa, diferentemente da Torre Pendente, a famosa.

Feita a correção, rumei atrás daquela imagem que há mais de 50 anos estava registrada na minha retina. Quando dei de cara com ela, senti um gosto de infância, de merengue, de cobertura de glacê, de açúcar de confeiteiro.

E um alívio por encontrá-la, sim, muito inclinada, como insinuado nos desenhos animados, por exemplo. Ela entrega o que promete há séculos: o improvável ou o impossível, para leigos em engenharia como eu. Essa, digamos, surpresa arquitetônica é, de longe, a maior fonte de receita da cidade de Pisa. É o errado que deu certo, muito certo. O monumento que se tornou cartão-postal e maior apelo de marketing da cidade começou a ser construído em 9 de agosto de 1173.

Cinco anos depois, durante a construção do terceiro andar, começou a inclinação que a tornaria memorável. Um período de guerras que durou quase um século manteve as obras paralisadas. Foram retomadas em 1272.

E me parece pitoresco que uma construção que, em tese, “não deu certo” tenha sido continuada cerca de cem anos passados, justamente preservando a sua “deficiência” original.

Será que algum marqueteiro pioneiro terá pensado que aquilo ainda se tornaria a marca da cidade e ajudaria a encher seus cofres? Para compensar a inclinação, os engenheiros fizeram a torre começar a pender em outra direção, ao construir os novos andares com um lado mais alto do que o outro. Em 1284, nova interrupção. Em 1319, terminaram o sétimo andar.

Mas a instalação da câmara para os sinos só seria acrescentada em 1372. Dos setes sinos da torre, o maior deles foi instalado apenas em 1655. Ou seja, durante mais de 850 anos o projeto foi preservado e, com interrupções quase centenárias, tocado em frente pelas novas gerações, em que pese o inusitado da situação.

Para sorte de Pisa, parece que a história da Torre Pendente esteve a salvo de políticos e empreiteiros corruptos, gente que certamente teria embolsado as verbas e abandonado a obra, quem sabe ainda em 1173.

Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing (stalimircom@gmail.com)

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