Vice: "O Brasil é um mercado careta"
A Vice nasceu como uma revista para punks em Montreal, em 1994. Vinte anos depois, ela se transformou em uma empresa global de mídia, tem uma agência de publicidade, uma gravadora e escritórios em 36 países. Em um momento em que a indústria jornalística revê seu modelo de negócio, a Vice está avaliada em US$ 1,4 bilhão, combina, sem pudores, publicidade e jornalismo, e recebeu os últimos anos aportes de companhias como Fox e WPP. A empresa chegou ao país em 2009 e, antes de assinar projetos para marcas como Puma, Ray-Ban e Intel, encontrou resistência no mercado, revela nesta entrevista Tony Cebrian, CEO da Vice Brasil. “Ninguém queria colocar dinheiro na Vice. Apesar de parecer o contrário, as pessoas aqui têm medo de arriscar”. Leia abaixo os principais trechos da conversa.
Vocês estão no Brasil desde 2009. Cinco anos depois, em que estágio a companhia está e como foi a trajetória até aqui?
O primeiro ano foi muito difícil. O nosso conteúdo é irreverente e falamos do que é preciso abordar. Quando apresentávamos nosso produto para as agências, todo mundo dizia que era incrível, mas falava que o Brasil não estava preparado para isso. Apesar de parecer o contrário, o Brasil é um mercado careta, as pessoas aqui têm medo de arriscar. Ninguém queria colocar dinheiro na Vice e foi um sufoco o primeiro ano. No final de 2010, a matriz fez uma parceria com a Intel para desenvolver o The Creators Project e, naquele momento, o Brasil era o segundo mercado mais importante para a Intel, o que beneficiou nossa operação. O projeto era uma plataforma completa, que envolvia redes sociais, site, conteúdo em vídeo, eventos e deu um resultado de 800 milhões de visualizações, além de apresentar artistas como Emicida e mudar a marca Intel no Brasil. Isso mostrou ao mercado que a Vice era mais do que conteúdo underground, que havia mais sobre nós. Com isso, as marcas – não as agências – começaram a nos procurar. Aos poucos, as demandas foram crescendo. No terceiro ano, a Puma decidiu apostar em nós e começamos a receber pedidos de agências. No quarto e no quinto ano já foi um boom. Começamos com 20 funcionários em 2013 e temos 66. Duplicamos o faturamento ano a ano e queremos duplicar o deste ano também. Ainda vigora a ideia de que branded content é um pedacinho de conteúdo, mas no final ainda é um anúncio. No entanto, hoje estamos envolvidos em grandes projetos que não sonharíamos fazer antes.
Quem mais procura vocês, as agências tradicionais, que estão entrando no jogo do digital, ou as digitais, que já estão nesse ambiente?
Hoje falamos com os principais executivos dentro das grandes agências, porque o conteúdo virou algo importante na publicidade. E isso não acontecia. Tínhamos dificuldade de falar com o cara de mídia. De cinco anos para cá, a nossa realidade mudou muito. As agências deixaram de nos ver como um guia para pegar mulher para nos enxergar como arquitetos de projetos. Com o The Creators Project, fomos os parceiros criativos do Coachella [festival de música norte-americano] em 2011. Fizemos mais de 20 documentários, entre 2010 e 2012, com pessoas como Emicida, Multi Randolph, Super Uber e Alexandre Herchcovitch.
A Vice nasceu em 1994 como uma revista independente para a cena underground e hoje é uma empresa bilionária. Como se deu essa transformação?
A Vice começou como uma bíblia hipster, cool, alternativa, que os hipsters, grupo pertencente à Geração Y, curtiam. Essa geração cresceu e é mainstream. Há 1,8 bilhão de jovens no mundo hoje. Essa população tem grande poder aquisitivo, tem acesso à tecnologia e a utiliza para disseminar informação. A Vice cresceu dentro dessa cultura digital. Já nascemos criando vídeos para a internet, não precisamos nos adaptar. É algo que está em nosso DNA e está no coração do nosso negócio. A mágica para isso é que as pessoas que estão visitando nossos canais são jovens, assim como quem está filmando, editando e apresentando também é jovem. Não precisamos fazer um esforço para dialogar com esse público. Não temos baias, não há agenda política por trás do que fazemos e isso dá liberdade para as pessoas contribuírem. Temos mais de 4,6 mil colaboradores [entre equipe in-house e freelancers], em 36 países.
Vocês fazem eventos, revista, digital, mobile, entre outros. Qual o braço mais relevante financeiramente?
Há dois grandes braços. Eu não dividiria em formato, e sim em tipos de conteúdo. Há a parte editorial, distribuída por meio de nossos canais e na qual uma marca, eventualmente, pode associar seu nome por meio de patrocínio. Outra forma é fazermos branded content, onde entram eventos e séries para marcas. Obviamente, o peso econômico deste último é muito maior, mas, sem o primeiro, não haveria o segundo.
Vocês têm contratos anuais com marcas e agências ou trabalham por projeto?
Trabalhamos com ambos. A Ray-Ban é um contrato anual e estamos fazendo trabalhos para Skol, Budweiser (produção de conteúdo), Volvo (social media), entre outros. Estamos com seis marcas atualmente e temos muitos miniprojetos com agências. Conforme as ações vão dando resultado, o profissional de mídia dentro da agência começa a arriscar mais e nos envolvemos em projetos mais audaciosos.
Lá fora a Vice tem agências in-house. No Brasil também há essa estrutura?
Se a marca quer fazer um trabalho além do banner, ela precisa de uma criação. Temos aqui dentro um núcleo criativo e existe uma compra de mídia bem específica. A compra é em nossas plataformas, em nosso grupo de sites e blogs afiliados ou nas plataformas do cliente, em torno do conteúdo produzido, para ajudar a alavancá-lo. Temos 150 sites e blogs afiliados em nossa rede Advice.
Globalmente, a companhia tem WPP e Fox entre seus investidores. Isso explica o pé da empresa no mundo da publicidade e do entretenimento?
Não, acredito que seja o contrário. Essas empresas é que querem colocar o pezinho dentro da Vice pela nossa orientação. Tudo isso começou a partir da VBS.tv [canal de TV online lançado em 2007 a partir de uma parceria entre Vice e Viacom, que deu origem à estrutura de séries e de canais da empresa hoje]. Tom Freston, fundador da MTV, foi quem iniciou essa parceria conosco. Depois de uma divergência entre a Viacom e Frestom relativa à compra do MySpace, ele começou esse projeto com a Vice. WPP e Fox entraram com percentuais muito pequenos [em 2011 e 2013, respectivamente. Fox investiu US$ 70 milhões e WPP, US$ 50 milhões]. A Vice ainda é uma empresa de capital fechado, de propriedade dos fundadores Shane Smith e Suroosh Alvi. Mas isso mostra o interesse dessas corporações no que estamos fazendo.
E há ainda a possibilidade do IPO?
Sim, essa é uma possibilidade, mas ainda não sabemos. É bom fazer essa sondagem, dizer que está interessado num IPO e ver a reação do mercado [em março, o fundador da Vice disse, em entrevista para a Bloomberg TV, que a empresa considerava abrir o capital na Bolsa]. Isso gera um grande interesse. E, para uma empresa de capital privado com valor estimado em US$ 1,4 bilhão, é bom fazer essa sondagem. É um passo natural [o IPO], mas não posso dizer se irá acontecer.
A proximidade de conteúdo editorial e de marca é tabu no jornalismo. Como funciona a mistura entre jornalistas e publicitários na casa?
Temos uma equipe de jornalistas e outra de conteúdo de marca. A Fernanda Negrini [sócia e diretora de conteúdo] transita entre esses dois pilares e é o elo entre eles. Conteúdo editorial é o nosso coração. Se isso se perde, o resto será inútil.
Vocês oscilam entre um tom clássico do jornalismo e um de extrema camaradagem. Como são definidos os assuntos a cobrir e a linguagem para cada matéria?
O jornalismo da Vice começou com o jornalismo imersivo, de o repórter entrar na situação e descrevê-la como ele a vê. Esse conceito está evoluindo com o Vice News e estamos produzindo mais matérias similares com o que se vê no noticiário clássico, mas ainda assim mantemos a peculiaridade do tom da Vice, de ser feito para o jovem. Há ainda a questão do especialista: na Vice, quem fala de música entende de música, quem reporta sobre cinema, entende desse assunto.
Vocês não têm papas na língua. Há algum filtro na linguagem?
Aqui há uma grande liberdade editorial. O limite é o que é ético e legal no jornalismo. Não há um assunto tabu. Tudo o que está na rua é pauta para nós. O filtro é ético. Sobre a linguagem, às vezes trazemos um tom sério para assuntos banais e uma abordagem informal para temas que são espinhosos. Muita gente acha que não, mas somos sérios e políticos. A Vice é uma mistura de “60 minutes” [telejornal da CBS] com “Jackass” [série da MTV]. Nem tudo tem que ser sempre levado tão a sério. Descontração é bom.
A companhia acabou de lançar um canal no Brasil, o Thump, para música eletrônica, e tem uma dezena de outros canais lá fora. Quais outros vocês trarão para cá?
Temos 12 canais ao todo. No Brasil, trabalhamos com o Noisey [sobre música], o The Creators Project [com a Intel], o Thump [em parceria com o Skol Beats Factory, plataforma da Skol desenvolvida pela Vice] e apresentaremos o Fightland [sobre o UFC] ainda neste ano. Também traremos em breve nossa vertical sobre culinária, a Munchies. Os próximos que estão por vir são Motherboard [ciência e tecnologia], Vice News [hardnews], a revista ID [moda e lifestyle], além do Vice Sports. O Sports ainda não tem data e, estrategicamente, talvez não seja bom lançar no meio da Copa do Mundo, porque haverá muito barulho e pode ser que fiquemos diluídos. A ID é uma revista icônica da indústria da moda que adquirimos recentemente e que estamos reformulando. O foco é apostar em vídeo e levá-la para o mundo digital. No Brasil ela será online, mas internacionalmente ela continuará com a versão impressa.
Qual a receita para crescer ao passo que a indústria de mídia enfrenta uma crise globalmente?
Há duas coisas. A primeira é que, durante muitos anos, as pessoas focaram em criar estruturas de canais, mas ninguém focou em preencher essas estruturas. O YouTube é um exemplo: uma grande plataforma, mas o vídeo mais assistido é o de um gatinho simpático. Esse conteúdo não tem valor algum, nem jornalístico, nem para marcas. Na Vice, focamos, desde sempre, em criar conteúdo. A segunda questão é que a linguagem, a textura e a forma como o material jornalístico é feito têm ficado cada vez mais impessoal. São x feridos, x mortos, você vê a CNN no topo de um hotel falando da bomba que está caindo lá longe. Nós procuramos histórias verdadeiras e pessoais. Um exemplo é um documentário que fizemos sobre uma banda de heavy metal com sede em Bagdá [produzido em 2007 pela Vice dos EUA], que fazia ensaios e shows em meio à Guerra do Iraque. Fomos lá procurar esse tipo de história. Não ficamos apenas na superfície e fazemos isso em primeira pessoa. O jornalismo envelheceu e vem falando com um público cada vez mais velho. A audiência está se desconectando de veículos tradicionais e a mídia convencional está buscando meios para se reinventar. A Vice, com esse tipo de conteúdo, quer falar ao jovem.
A Vice já navega muito bem pelo digital, algo ainda penoso para o setor de mídia. Mas toda empresa tem a sua encruzilhada. A empresa consegue antever qual será seu grande desafio?
Na verdade, já passamos por essa encruzilhada. Chega um momento em que você questiona se precisa prestar mais serviços para as marcas ou precisa crescer como grupo de mídia. Nós somos um grupo de mídia. Precisamos, muito, prestar serviços para a indústria publicitária, é isso que nos fez pagar as contas e evoluir, mas é cada vez mais o grupo de mídia que está fortalecido. Os canais trazem mais gente e é esse o caminho: criar conteúdo para a nossa audiência, para as marcas, mas sempre com um posicionamento de grupo de mídia independente. Com o tanto de canais que temos hoje, uma grande questão é como preenchê-los com informação relevante. Crescer, delegar e passar para as pessoas que trabalham conosco a visão da Vice, além de encontrar os talentos que entendem quem somos, é muito importante.