Viver é contar mentiras
Esta frase me ocorreu agora, em busca de uma abertura para esta crônica. Não há vivente que não espalhe pequenas inverdades desde que acorda. Não falo das mentironas de candidatos, aquelas invenções elaboradas com o propósito de enganar o pobre do eleitor. Mentiras que ressaltam qualidades inexistentes ou aumentam defeitos dos adversários. Estou falando daquelas pequenas mentirinhas que ajudam a convivência, uma espécie de código preestabelecido que tem como subleitura o propósito de não desagradar. “Não vou jantar na sua casa hoje porque acho a comida de sua mulher intragável”. Essa é a verdade que explica o declinar de um convite para uma reunião entre amigos. Ninguém diria isso, pelo menos entre os mais civilizados. “Que pena, logo hoje que prometi cuidar dos meus netos para que os pais possam ir a um compromisso!” É uma mentira, mas também significa o respeito que você tem por quem fez o convite. Uma mentira-homenagem, que pode ser entendida como “eu gosto de você, por isso minto”.
“Você está mais magro” é uma saudação que não custa nada para quem fala, mas é ouro puro para quem ouve. Tenho uma amiga querida que fala que vai para o céu sem nenhuma intermediação porque propiciou durante a vida alguns momentos de imensa felicidade a muita gente. Dirão os fesceninos que se trata de capricho nas lides do amor. Pois não é. E, como diria ela, é logo de saída uma singela observação. Afirma que a primeira vez que sai com um namorado, ao início das lides amorosas, ela, quando é apresentada à instrumentação do parceiro, diz, assustada: “nooossa, que coisa grande!” Segundo a própria, é o primeiro clímax que proporciona. E afirma que jamais foi desmentida. “Ficou maluca? Não conhece pênis, minha filha? Estou dentro da média de minha etnia” seria a resposta de quem exige a verdade absoluta como ingrediente fundamental em relacionamentos sadios. Nesse e em muitos outros casos, a verdade broxa, se me permitem a palavra fescenina.
Pregamos às dezenas essas petas ao longo de um único dia. São pétalas de delicadezas que soltamos como quem semeia. “Seu penteado está lindo!”, “muito bom seu artigo no jornal hoje”, “estava ótimo seu programa ontem…” Longe de ser hipocrisias, são pequenas declarações de amor. Não conheço ninguém que se sinta agradecido com a observação tipo: “você falou demais” ou “mais um artigo que não fede nem cheira”. Essa sinceridade não é útil, não colabora com nada, não estimula coisa alguma. E tem outra beleza oculta nessas pequeninas gotas de bondade que espalhamos. Elas têm o poder mágico de contribuir para que o mundo pareça melhor. Qual a vantagem de dizer para os papais e mamães que o desenho do prodigioso filho ou da prendada filha de 4 aninhos é exatamente igual ao desenho de milhões de crianças dessa idade ao redor do mundo? Digo isso porque um dia um filho da puta fez essa observação diante da obra de arte criada por minha filha no jardim de infância. Faz 32 anos e não me esqueci até hoje. O pior é que atualmente ele critica com o mesmo fervor os desenhos dos netos dele, provando que é um tremendo mau-caráter, indigno de viver em sociedade.
Não fosse o fato de que seus netinhos não têm nada a ver com a estupidez do avô, eu diria que ele tem razão quanto ao valor artístico da obra das crianças dele. Não chegam aos pés da qualidade da produção de minha filha e agora de minhas netas. Mudando um pouco de assunto, a pandemia que nos obriga a viver isolados tem uma grande vantagem. Nos livra de encontrar candidatos a cargos eletivos. Aqueles velhos e queridos amigos íntimos que vimos uma ou duas vezes na vida, que às vésperas de eleição ficam comovidos a ponto de verter lágrimas ao nos encontrar. “Querido – me disse um deles numa festa – falei muito de você ontem com minha mulher!”. Diz Silvana, a minha mulher, que eu teria respondido: “Puta falta de assunto”. Não me lembro desse episódio, devia ter bebido, mas depois que passaram as eleições e o tal fulano não foi eleito, ele já não estava tão íntimo. Ficou nos obas e olás protocolares. Atribue-se a Sergio Cabral pai uma resposta genial para alguém que o encontrou num evento e cheio de intimidade perguntou: “E aí, Sergio Cabral, seu veado, quais são as novidades?” E Sergio teria respondido: “Novidade mesmo só a nossa amizade!”
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)