Voltando ao Aurora
O Aurora é um velho restaurante carioca, em Botafogo. Nos seus 118 anos de existência, começou atendendo os funcionários da companhia de bondes, cuja garagem era nas imediações. Depois se especializou em motoristas de táxi, que durante o dia inteiro aproveitavam de sua comida farta e barata, além da facilidade de estacionar. Mais tarde, já nos anos 1960, conseguiu juntar taxistas, jornalistas, publicitários e damas da noite. Foi sua época de glória.
Na categoria publicitário, incluo, claro, os fornecedores, gente de produtoras, gravadoras e jinglistas. Muita, muita gente. Nos anos 1960, a indústria da propaganda era empregadora extensiva, pois, que eu me lembre, só nos estúdios da Thompson trabalhavam 30 pessoas. E se produziam materiais impressos às toneladas, sustentando dezenas de gráficas, clicherias e produtoras de fotolitos. E os fotógrafos tinham imensos estúdios. Essa gente fazia do Aurora seu ponto de encontro.
Quando comecei a frequentar o Aurora, a Lintas era ali perto, ele vivia lotado, funcionando umas 18 horas por dia. Começava na hora do almoço e ia mais ou menos até o fechamento dos jornais, no meio da madrugada. No começo deste século, o Aurora viu agências diminuírem de tamanho, gráficas desaparecerem, fotógrafos rarearem e jornais acabarem. Dos dez ou 12 jornais do fim do século passado, restam três grandes e dois nanicos, empregando cada vez menos gente. Sua freguesia foi diminuindo, ficando cada vez mais macambúzia, ao mesmo tempo em que o bairro ia ganhando outro tipo de frequência e de restaurantes.
Ficou decadente e, estranhamente, desconfortável. A ausência de ar-condicionado, jamais percebida, passou a ser um defeito. Um dia fechou para reformas, como um prenúncio para o desaparecimento. Pois bem, há algum tempo o Aurora reabriu, com uma decoração mais clean, ar-condicionado, ares de pé limpo. No começo me recusei a ir, com medo da tristeza em descobrir que as coisas não voltam e quem ficou velho fui eu, não o lugar. Insistiram e acabei indo almoçar com antigos amigos, imaginando um chororô nostálgico de velhinhos saudosos, acreditando bestamente que seu tempo era melhor. Enganei-me.
O Aurora está ótimo, com a mesma comida, agora entregue para uma filha do dono, que fez curso de gastronomia, mas teve a humildade de manter os carros-chefes, cheiros e sabores atemporais. São pastéis, linguicinhas e iscas de peixe nos tira-gostos, arroz de polvo, lulas e filés nos principais, com cara de botequim e generosidade portuguesa. E os frequentadores estão se comportando à altura, disfarçando as lágrimas de saudade e mandando ver, como se não houvesse amanhã, o que, para alguns, é quase verdade. Foi num dia desses que alguém se lembrou de uma noite em que um frequentador meio de porre pegou por engano nas costas da cadeira um casaco que não era o seu e foi para um motel com uma colega de trabalho completando um romance que se iniciara durante o jantar.
Ela, temerosa de entregar sua vida ao bebum, preferiu dirigir. E no caminho estourou um pneu. Para piorar, chovia. Como ele se mostrou incapaz de lidar com o macaco, ela decidiu fazer a troca, já que estavam num lugar meio perigoso. Ficou completamente molhada, ao que o gentil cavalheiro fez questão de cobri-la com seu casaco que, como vimos, não era o seu. A essa altura, com o programa arruinado, ela resolveu deixá-lo em casa, pegar um táxi e dormir na própria cama. Que fez o bebum? Não aceitou o casaco de volta, num gesto de grandeza: “fique com ele, amor, para você não se esquecer de mim!”
Como se fosse preciso uma lembrança, depois de uma noite frustrada, um vestido destruído e um começo de gripe. Mas, para se livrar logo do chato, agradeceu foi embora. Dias depois, a dona do casaco que ele sem querer surrupiara conseguiu concluir com quem estaria, já que ao fim da noite, fora o dele que permaneceu nas costas da cadeira. A essa altura, sem saber que não se tratava do seu, ele tinha confirmado o presente, tentando reatar o romance interrompido. Estávamos nessa altura da história quando o narrador olhou para o relógio. “Meu Deus! Tenho uma audiência às quatro!” E saiu correndo. Os amigos estão desesperados atrás dele. Nem tanto pela conta que ele deixou sem pagar. Mas, muito mais para descobrir como é que terminou a história do casaco. O problema é que ele não tem aparecido no Aurora.