Voos antigos

Como se não me bastassem a mulher e os filhos a denunciarem minhas falhas de memória e a anciã mania de ser repetitivo, os editores aqui deste jornal e alguns leitores descobrem que já leram histórias nesta coluna há anos publicadas.

Evidentemente fico lisonjeado por ter sido mantido na memória por dois ou três anos, por ter feito nada corriqueiro nestes tempos de passagens rápidas e de rápido esquecimento.

Mas já está me angustiando com a perspectiva de receber, em cima da hora do fechamento do jornal, um telefonema de uma editora, gentilíssima, mas determinada, avisando que “esta história você já contou”.

Pois, então, fique a ressalva: se já contei esta, me desculpe. E, o que é pior, não adianta me telefonar porque preciso ir a Campo Grande fazer uma palestra e volto para outro evento em Vitória e não haverá tempo de escrever outra.

Fica como revival ou reapresentação para leitores mais recentes.

Trata-se de minha viagem Rio/São Paulo com o presidente da Academia Brasileira de Letras, Arnaldo Niskier, e Marisa Raja Gabaglia. Embora pareça incrível, o vetusto intelectual e o jornalista porra louca se gostavam e se curtiam.

Evidentemente cada um achando o outro meio louco, à sua maneira.

Estou usando o passado nesta descrição, mas só vale para Marisa, pois Arnaldo continua vivo – graças a Deus – e bem vivo. Mas qual era a história, Lula? A seguinte.

Estávamos os três na ponte aérea. O avião ainda era o Electra e a viagem muito mais requintada e romântica do que agora. Havia uísque, vinhos e canapés, com direito a fumar e reclinar a poltrona até um ângulo convidativo ao sono.

Como bons e civilizados viajantes, ao nos encontrarmos no aeroporto, fomos ao bar para nos preparar para o voo com dignidade, bebendo numerosas doses de uísque.

Assim, sem nos esgoelarmos em celulares ou perdermos a paciência na fila, embarcamos, felizes, para continuar a beber no avião.

Poucos minutos depois da decolagem, mais cansado, Arnaldo acabou ferrando no sono, entre Marisa e eu, cada um numa extremidade do banco.

Tivemos de continuar a conversa meio no grito, para vencer o barulho das quatro turbinas do Electra e do ronco do Arnaldo, numa disputa feroz.

A certa altura da discussão, Marisa afirma que eu não passava de um intectualzinho metido à besta. Como exemplo, afirmou que eu jamais teria lido um de seus livros.

“O quueeeeeê?! – respondi – Sua ingrata! Eu li Amor Bandido e Milho pras Galinhas, Mariquinha!”

A esta altura, Arnaldo abre o olho e entra na conversa: “Lula, já que você lê qualquer merda, deixa eu te dar meu último livro”.

E ali mesmo, sob o silêncio respeitoso de todo avião, me autografou um profundo estudo de sua autoria sobre os problemas de educação no Brasil. Eu escrevi respeitoso? Pois sabia o que estava escrevendo.

O livro tem a seriedade, a compostura e a qualidade intelectual do grande Arnaldo Niskier. Mas o respeito nasce da capacidade incrível que ele tem de rir de si mesmo e dos outros, ou seja, ele sabe entender com verdadeira ternura o ser humano, não o levando demasiadamente a sério para não perder o amor.

Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)
 
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