Para além das publis: o papel das empresas no fomento do futebol feminino
Apesar de avanços como o aumento das premiações e visibilidade, o futebol feminino ainda possui um caminho longo para a equidade
“Não vai ter uma Formiga para sempre, uma Marta, uma Cristiane. O futebol feminino depende de vocês para sobreviver”. Há quatro anos, o Brasil foi eliminado da Copa do Mundo Feminina pela seleção da França e as palavras de Marta, pedindo por mais apoio e valorização da modalidade, ecoaram pelo país. Nesta segunda-feira (24), as brasileiras estrearam em busca da primeira estrela.
Muitas são as explicações do porquê o futebol feminino ainda é visto como inferior, mas a principal delas é o fato de que as mulheres foram proibidas, por lei, a praticarem o esporte em 1965.
Segundo o decreto da época marcada pela ditadura militar, “não é permitida [à mulher] a prática de lutas de qualquer natureza, do futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball”. As mulheres puderam voltar a jogar bola apenas em 1979, quando a seleção masculina já era tricampeã mundial. Em uma conta básica, a modalidade feminina passou 14 anos sem poder se desenvolver.
A distância temporal também fica explicita quando se trata de Copa do Mundo. Enquanto a versão masculina do campeonato teve sua estreia em 1930, a feminina só teve sua vez — de forma oficial — 61 anos depois, em 1991. Agora, chegando a sua nona edição, a Copa do Mundo Feminina tem sido marcada, desde a sua preparação, por diversas mudanças tanto no público quanto no mercado, que passou a investir mais em campanhas de incentivo à modalidade.
"O futebol feminino é um produto em constante desenvolvimento e as marcas certamente vão investir. Uma ideia seria adotar uma forma diferente de medir o patrocínio, adotar uma métrica de retorno diferente do que se utiliza no futebol masculino, que é a audiência. Tentar medir por outros valores e belezas que se associam à propriedade de futebol feminino, a um movimento, do que números de audiência", afirmou Ivan Martinho, professor de marketing esportivo da ESPM.
Desta vez, o campeonato será transmitido de forma multiplataforma, com metade dos jogos na TV aberta, pela Globo e pelo canal CazéTV, do influenciador Casimiro Miguel, que vai transmitir todos os jogos do mundial.
A Ronaldo TV também será responsável pela cobertura da Copa e, embora não tenha os direitos de transmissão, vai contar com a ajuda de influenciadores e jornalistas que estarão na Austrália e na Nova Zelândia acompanhando as disputas pelo troféu. Outro player que estará in loco é a NWB, dona dos canais Desimpedidos, Camisa 21 e Passa a Bola, com conteúdos que terão como objetivo aproximar os torcedores.
"Mesmo em fase de crescimento, o futebol feminino tem uma audiência menor e a grande maioria de quem assiste é o público masculino. Uma das estratégias das marcas seria levar mais audiência feminina aos jogos, valorizar o produto e aumentar esse público específico. As redes sociais servem para estender a conversa do que acontece dentro de campo, mas o mais importante é prestigiar o jogo", completou o docente.
Apesar de recente, o movimento de apoio das marcas à modalidade é um dos pontos-chave para mudar o cenário de desigualdade e preconceito sofrido pelas atletas, que, segundo a pesquisa “Mulher & Esporte: Um pacto coletivo para a nova narrativa”, feita pela Centauro, em parceria com o Grupo Consumoteca, é notada pelo público.
De acordo com os dados apresentados, 78% das pessoas acreditam que o investimento no futebol deveria ser destinado igualmente para as modalidades masculina e feminina e 81% concordam que o futebol feminino deveria ter mais patrocínio das marcas.
“É importante ressaltar que diversidade e inclusão são tendências muito fortes aos próximos anos. Quando uma empresa exalta o futebol feminino, acaba inconscientemente efetuando práticas que reforcem o acolhimento dessa tendência”, afirmou Mariana Munis, professora de marketing e comportamento do consumidor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Campinas.
Em geral, as peças publicitárias voltadas à competição deste ano se encontram em um ponto comum: no pedido de apoio às jogadoras brasileiras. Empresas como Mastercard, Zé Delivery, Visa, Sicredi, Guaraná Antarctica, Nike e outras prepararam e lançaram suas peças com chamadas como “Acorda Pra Elas”, “Olha Pra Elas”, “Elas Em Campo” e “Conecta com Elas”, todas convidando os torcedores a se juntarem e vibrarem pelas jogadoras.
Mas, para além das campanhas, o que mais pode ser feito em prol do fomento do futebol feminino?
Para Mariana, o trabalho para atrair mais investimento para modalidade deve começar pela base. “Acho muito interessante pensar em parcerias público-privadas, cujas empresas que se preocupam com as mulheres incentivem e patrocinem campeonatos de futebol feminino, peneiras para seleção dessas meninas etc. Eu também acredito que os profissionais de marketing devam contratar as atletas para fazerem campanhas e serem embaixadoras de suas marcas, antes mesmo de pensarem na contratação de um atleta do futebol masculino”, reforçou a docente.
Uma empresa que pode ser usada de exemplo neste caso é a Cimed. Além de patrocinadora da CBF, a farmacêutica também contratou duas jogadoras da seleção feminina, a Bia Zaneratto e a Debinha, e a ex-jogadora Formiga para serem suas embaixadoras. Mesmo na Copa do Mundo masculina, que aconteceu em 2022 no Qatar, a farmacêutica optou por contratar não os jogadores, mas sim as mulheres deles para a sua campanha.
"Eu tenho certeza que depois do movimento que nós vamos fazer para essa Copa do Mundo, vai chover patrocínio para as meninas e para a modalidade. Esse é o nosso principal objetivo, chamar a atenção do mercado. Não só o nosso, mas de todo mundo que está no projeto. As pessoas estão muito esperançosas, imagina só se a gente ganha essa estrela da Copa? Vai virar o jogo, mas independentemente disso, tem uma coisa maior, que é colocar o futebol feminino em um lugar de destaque, que é onde ele merece estar", afirmou Karla Marques Felmanas, vice-presidente da farmacêutica em entrevista prévia ao propmark.
A Nike entra no ponto de parcerias, com um trabalho de identificação das barreiras que impediam as mulheres de jogarem bola, como o preconceito, falta de estrutura e segurança. A marca se uniu com movimentos já existentes para apoiar e impulsionar ações, como é o caso da “Nossa Arena”, que consiste em um espaço poliesportivo dedicado exclusivamente para mulheres, localizado na Barra Funda, em São Paulo.
“Em 2019, criamos a plataforma Nike Football Community, que atualmente no Brasil atua de diversas maneiras, inclusive, com treinos gratuitos e semanais no campo do Parque do Ibirapuera, revitalizado pela Nike, em 2017”, explicou Gustavo Viana, diretor de marketing da Fisia, distribuidora oficial da Nike no Brasil.
O projeto NFC tem como objetivo encorajar mulheres a praticarem futebol de forma democrática, permitindo que àquelas que nunca jogaram futebol possam ter acesso, ao mesmo tempo que as fãs da modalidade também encontram o seu espaço
Outra empresa que tem se mostrado atenta às demandas do futebol feminino é Guaraná Antarctica, que é patrocinadora da seleção há mais de 20 anos.
“O futebol sempre foi um território extremamente relevante para construirmos nossa marca e a conexão com o público. Em 2019, percebemos que a modalidade do futebol feminino merecia mais destaque e alguns temas relacionados à sua visibilidade tinham pouco espaço para discussão, seja nas próprias marcas ou entre os torcedores”, contou Tetê Chaves, diretora de marketing de Guaraná Antarctica.
A partir desta visão, a marca passou a investir em formas de fomento da modalidade, como por exemplo a ação #Presanos80, que foi um movimento liderado pelas atletas femininas durante as Olimpíadas para reforçar a importância do investimento no futebol feminino.
A campanha foi baseada em um dado de apontou que o futebol feminino, atualmente, reverte de renda para as atletas o equivalente ao que os jogadores do masculino ganhavam nos anos 1980. Com a ação, o Guaraná trouxe de volta um dos seus primeiros rótulos e toda a renda conquistada com as vendas da edição especial da bebida foi revertida para a ONG Meninas em Campo, que dá apoio e estrutura para meninas da base.
Para a Copa, a marca está com a campanha #OlhaPraElas, que foi iniciada no último amistoso da seleção brasileira, antes de elas embarcaram para a Copa do Mundo. A ação teve como objetivo apresentar as jogadoras ao público, dar luz para as histórias delas e convidar a população brasileira a torcer durante o campeonato mundial.
“Temos muito orgulho da construção de Guaraná Antarctica no apoio ao futebol feminino. Claro, ainda temos um longo caminho pela frente e é por isso que acreditamos no futebol como uma plataforma perene de iniciativas. É importante para a modalidade que a gente consiga promover discussões e traga outras marcas e pessoas para refletir sobre o assunto. Isso vale tanto para nós, quanto para o Zé Delivery ou qualquer outra marca”, completou Tetê.
A Pague Menos também embarcou nas ações de fomento ao futebol feminino graças ao patrocínio da empresa na CBF. Para além da Copa do Mundo, Flávia Drummond, diretora de marketing, growth e CX da Pague Menos e Extrafarma, também reconhece que ainda há um caminho longo para a equidade, mas garantiu que o apoio da Pague Menos na modalidade é apenas o início da jornada.
“Ao patrocinar à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), estamos mostrando nosso compromisso com a igualdade de gênero e promovendo a diversidade no esporte. Queremos inspirar outras empresas e a sociedade em geral a apoiar o futebol feminino, rompendo estereótipos e criando um ambiente mais inclusivo. Juntos, podemos construir um país onde mulheres no esporte sejam aplaudidas e incentivadas da mesma forma que seus colegas”, afirmou a executiva.
Flávia também contou que a Pague Menos será uma das empresas que vão adotar os jogos da seleção como ponto facultativo, permitindo que seus funcionários sejam liberados para assistirem as partidas. A empresa também vai oferecer infraestrutura para que os seus colaboradores possam assistir aos jogos nos centros de distribuição.
Já para a SEMP TCL, apoiar o futebol faz parte da estratégia de negócio da empresa. “Reforçar o marketing esportivo é nossa estratégia de marca, principalmente no futebol”, reforçou Dale Chen, diretor de marketing da empresa, que, quando questionado sobre futebol feminino, afirmou que apoiar é uma forma de incentivar e enaltecer o protagonismo das mulheres.
“O futebol feminino ainda enfrenta alguns desafios e preconceitos, por isso buscamos sempre trabalhar em conjunto com nossos parceiros para promover ambientes mais respeitosos, inclusivos que promovam uma jornada inspiradora, criando uma estratégia sólida e que contribua para que a igualdade seja alcançada em conjunto – principalmente em uma esfera de tanto alcance como é o esporte”, completou Chen.
Governo e CBF
Em março deste ano, o Governo Federal assinou um decreto que cria a Estratégia Nacional para o Futebol Feminino, que prevê a promoção do desenvolvimento do futebol feminino amador e profissional, com mais investimentos e foco em proporcionar a descoberta de novos talentos, além de ações de fomento à participação das mulheres na gestão, arbitragem e direção técnica de equipes.
Para atender a estas e outras medidas, o Ministério dos Esportes vai firmar parcerias com estados, distrito federal e municípios, bem como com confederações, federações, ligas, clubes de futebol ou demais entidades voltadas ao desenvolvimento do futebol feminino profissional e amador no Brasil.
No âmbito esportivo, em 2019 foi determinado que todos os times da Série A do Brasileiro deveriam, obrigatoriamente, manter um time feminino, tanto profissional quanto de base. Em um cenário mais recente, o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ednaldo Rodrigues, afirmou que até 2027 todos os times da Série A, B, C e D precisarão ter uma equipe feminina.
“Queremos que o futebol feminino possa ser bastante valorizado e apoiado. Não adianta o clube achar que o futebol feminino é sacrifício. Pensamos de forma macro. Para que os clubes possam estar na Série A é obrigatório ter futebol feminino. Isso vai ser estendido para as Série B, C e D. Em 2027, o clube que for jogar a Série D precisará ter o futebol feminino. São 64 clubes que vão praticar, em todo o Brasil, o futebol feminino”, afirmou o presidente durante um evento realizado em fevereiro de 2023.
Mesmo que a passos curtos e lentos, aos poucos, o futebol feminino vem alcançando um lugar que sempre lhe foi de direito: o de destaque. Entre esses pequenos passos, estão algumas grandes conquistas para a modalidade, como por exemplo o aumento da premiação das competições disputadas pelas atletas.
A Copa do Mundo Feminina de 2023, por exemplo, aumentou o prêmio para US$ 150 milhões (o equivalente a R$ 750 milhões), um valor que é três vezes maior do que o dado para as campeãs de 2019. Já o prêmio para o time campeão da Campeonato Brasileiro feminino subiu de R$ 180 mil para R$ 1 milhão.
Segundo Ana Teresa Ratti, cofundadora da Vesta, uma outra forma de que fornecer apoio ao futebol feminino é o investimento de empresas em formação e qualificação das atletas, formando ídolos. "Fãs se conectam com o esporte, com seus clubes do coração, com a seleção nacional, mas, também, com seus ídolos. Desenvolver ídolos competentes em suas relações com os fãs pode ser altamente estratégico e garantir retornos positivos para todos: marcas patrocinadoras, clubes, gestores das atletas e, as próprias atletas", explicou a gestora esportiva.
Ainda falta muito para que a equidade seja alcançada, mas, com o apoio tanto das empresas quanto do governo e das entidades mundiais envolvidas com o futebol feminino, esse trajeto tende a ser cada vez menor.