Porque creio em Deus

A história é meio antiga, é do tempo dos publicitários que ganhavam dinheiro, que recebiam prêmios e iam para Cannes pagos pelas agências. Bons tempos, eu diria quase felizes, onde pessoas conseguiam se divertir no chamado horário de trabalho e, acreditem, saía-se para almoçar em bons restaurantes (os por quilo eram raríssimos e considerados meio bregas) e até se bebia, na maioria das vezes uísque ou cerveja. Vinho não era moda, embora de vez em quando, no calor mais apertado, aceitava-se um vinho branco, de garrafa azul, de nobre estirpe alemã, capaz de proporcionar azia no próprio envelope de antiácido.

Havia salas para as chamadas duplas de criação, um redator e um diretor de arte que trocavam ideias, experimentavam textos e ilustrações, em números hoje inacreditáveis. Uma boa campanha, aquela capaz de mudar a história de um produto, alçá-lo à liderança do mercado e transformá-lo num patrimônio cultural, muitas vezes custava centenas de experimentos, arrobas de papéis atirados na lixeira e boa dúzia de ofensas. Não havia computador? Há de perguntar o gentil leitor. Sim, havia, mas não era o banco de imagem o criador do leiaute, aliás, nem havia bancos de imagem.

Após o leiaute nascer do papel rabiscado, pendurado na parede, submetido a todo tipo de crítica e execrações, poderia se imaginar que havia nascido uma peça publicitária. Anúncio, outdoor, busdoor ou até mesmo um banner. Mas a história que eu quero contar hoje não é uma chorumela saudosa, coisa de velho que – ainda o sendo – consigo até mesmo trabalhar numa das mais arrojadas empresas de comunicação do Brasil. O que eu quero contar é do tempo do varal de leiautes que, como na música de Orestes Barbosa, estavam expostos na sala de dois colegas que resolveram ir almoçar e deixaram-nos os chamados rafes, à espera de que na volta fosse feita a crítica final. Na verdade, eram três campanhas, uma clássica, bem realizada e absolutamente adequada ao briefing. As duas outras, meros exercícios, sendo uma delas de porralouquice inominável. Muito mais um exercício de sacanear um pouco os colegas. Por estas coisas que jamais se repetem, a diretoria do cliente resolveu fazer uma visita urgente à agência e foi levada a conhecer a sala dos criadores ausentes. Não é tão difícil imaginar que estavam todos ligeiramente eufóricos com o belíssimo almoço que tiveram e vibraram com a campanha boi de piranha, a que nasceu para não ter sido. Bem, como eu sou um dos participantes da história, posso garantir que é verdade. Quando voltei do almoço havia uma festa na agência.

Meu diretor de arte e eu fomos considerados gênios da raça, um exemplo a estas e às futuras gerações de criadores. Uma ousadia que desprezava o briefing, mas introduzia uma nova visão do produto. Covardes, não tivemos coragem de desmentir. Fizemos cara de modestos e ainda tentamos dar algum tipo de lógica naquela maluquice. Bem, antes de que me acusem de ter me aproveitado de uma momentânea euforia alcoólica do cliente, concluo que a campanha foi um sucesso. Ganhou prêmios nacionais e internacionais e mereceu cases na imprensa leiga e especializada. Mais ainda, criou escola e foi o posicionamento do produto durante mais de 10 anos.

O pior de tudo foi numa convenção internacional em que a língua oficial era o inglês, idioma que eu domino mais ou menos no nível do Tiririca, ou como o Bolsonaro entende de cultura. Sem me avisarem, o apresentador anunciou que o Lula Vieira do Brasil iria contar como contribuímos para uma nova compreensão da relação do consumidor com a categoria. Ridículo, ridículo e meio e, tal como Dilma falando francês, improvisei uma algaravia sem muito sentido, cheio de gestos como todo monoglota faz quando quer fingir que fala língua estrangeira. Alguém acredita? Foi um sucesso. Deus de vez em quando ajuda os irresponsáveis.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)

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