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Há cerca de uma semana me chamou atenção no jornal uma reportagem (assinada por Richard Furst, especial para O Globo) sobre um bar gay em Jerusalém que une pacificamente judeus israelenses e palestinos há cinco anos. Lá, judeus, cristãos, muçulmanos, etíopes, drusos, turistas e estrangeiros gays e héteros se divertem madrugada adentro a poucos metros do Santo Sepulcro, do Muro das Lamentações e da Esplanada das Mesquitas. Pouco importam origem, religião, preferências sexuais. Já fora dali, cada um administra a seu modo as diferenças impostas pelo “mundo real”.

A intolerância permeia a sociedade desde sempre. Na política e na religião, em especial, se (des)encontram focos como a proposta da cantora (?) Ana Paula Valadão nas redes sociais, de boicotar a C&A porque a marca estaria fazendo apologia à “mistura” ou “ausência” de gêneros em sua nova campanha publicitária. O conceito Misture, ouse, experimente, criado há alguns meses pela AlmapBBDO, foi adaptado ao Dia dos Namorados – o Dia dos misturados. O filme exibe casais “trocando” suas roupas: mulheres vestindo roupas masculinas, homens usando salto alto. Transgressão? Ou apenas a luz sobre a diversidade do que somos, ou podemos ser, também, e não só?

Não se avançam “limites” para visitar tais territórios à toa. Historicamente, a publicidade procura refletir o espírito do tempo. Mas, para grandes marcas, tocar em temas polêmicos ainda é novidade. O que me leva, invariavelmente, a relembrar a mãe de todas as marcas que ousaram revelar suas visões de mundo: a Benetton, que com suas campanhas épicas desbravou um lugar antes dominado por ONGs e outras instituições sem fins lucrativos, que não possuem produtos para vender em gôndolas. A partir dos anos 1980, pelas mãos do fotógrafo “maldito” Oliviero Toscani, as campanhas da marca italiana fizeram história na publicidade ao abordar toda sorte de polêmicas: racismo, intolerância política, sexualidade, Aids, violência, trabalho infantil, guerra e meio ambiente. A proposta de paz e tolerância contida em imagens tão surpreendentes quanto o papa Bento XVI beijando um imame egípcio causaram desconforto e fizeram pensar.

A Benetton se posicionou, escancarou sua visão de mundo e enfrentou toda sorte de batalhas – até com o Vaticano. Há exatos 30 anos, Toscani publicava o polêmico livro A propaganda é um cadáver que nos sorri, em que defendeu o papel da publicidade como transformador da sociedade. Para o visionário Toscani, a condição humana é inseparável do consumo. Ele está certo, embora os ataques devessem ter sido direcionados um pouco mais às marcas do que à publicidade. Porque é preciso muita coragem, como anunciante, para agir no mundo como a Benetton e lidar com as consequências.

Hoje, curiosamente, ter um propósito é mandatório no mundo das marcas. O papel das que não vieram a esse mundo a passeio é, sim, captar o incontestável espírito do nosso tempo e ter coragem de não agradar a todos. Empresas como Unilever, Target, P&G, O Boticário, C&A e L’Oréal mostram-se conectadas, participantes, vivas, atentas à realidade em que estão inseridas. E, até por isso, são fortes o suficiente para lidar com pessoas que preferem praticar a tolerância apenas de madrugada, como os frequentadores daquele bar em Jerusalém. É vital refletir, hoje mais do que nunca, como marca e como profissional que cuida de marcas, sobre o lado que se está nesse jogo de esconde-esconde, de morto-vivo. Para, como disse o velho Toscani, ser lembrado por algo mais do que produtos.

Claudia Penteado é jornalista e repórter do PROPMARK