Quando Michael Porter criou o conceito de cadeia de valor em 1985, a internet ainda era uma atividade limitada às comunidades acadêmicas e militares. E estávamos longe da revolução que o digital causou e vem causando na vida das pessoas, das empresas e da economia. Três décadas depois talvez seja a hora de algum estudioso pensar no conceito da “cadeia de desvalor” que o digital está gerando na atividade da mídia e da publicidade, ao adicionar novos players pouco produtivos à atividade, que está corroendo recursos da mídia em geral, com exceção da TV e das agências.

Michael Wolff, em seu livro sobre “O inesperado triunfo da TV na era digital”, abordou essa erosão de valor da mídia que o digital causou, vitimando o próprio digital em primeiro lugar e a mídia impressa, em seguida. A TV escapou porque o digital acabou sendo um novo canal de distribuição e um novo cliente para a sua produção. O digital entrou num círculo vicioso de desvalor que leva à oferta tanto de serviços gratuitos como de publicidade barata, que gerou uma situação de baixa ou inexistente rentabilidade no setor e levou à fuga através de mecanismos pouco transparentes de mensuração de resultados e de elevadas doses de fraude.

A mídia impressa viu as suas receitas decrescerem pela grande redução da publicidade de classificados e de venda direta em geral e pela apropriação e distribuição sem o pagamento de direitos de seu conteúdo, que impactou na venda de exemplares e assinaturas. Nos últimos tempos, surgiu uma nova ameaça para o ecossistema da mídia e da publicidade, que é mídia programática, que funciona dentro da lógica da oferta de publicidade digital direcionada e paga apenas quando o target reage à oferta. Só que esse modelo é nefasto em diversos sentidos.

A mídia programática gera no anunciante uma falsa sensação de precisão, pois acaba levando sua mensagem a ambientes poucos controlados, através do sourced traffic, chega a ser até mais invasivo que a publicidade tradicional e, por conta das fraudes, leva os clientes a pagar por cliques feitos por robôs e não por seres humanos. Além disso, esse tipo de mídia colocou na cadeia de valor da publicidade diversos novos players, como DMP (Data Management Platform), ATD (Agency Trading Desk), DSP (Demand-Site Platform), Ad Exchange, Ad Network e SSP (Supply-Side Platform).

Com qual porcentagem de valor esses players ficam? Ninguém sabe ao certo, em especial na versão programática, que funciona em uma verdadeira caixa-preta, sujeita à colisão de vários interesses estranhos à tradicional cadeia anunciante/agência/veículo. No Reino Unido, o grupo de mídia The Guardian fez um primeiro movimento em direção ao disclosure dessa caixa-preta, ao adquirir uma campanha através do modelo programático direcionada a seus veículos. Assim, a empresa pode saber exatamente quanto pagou e quanto recebeu…

A surpresa foi grande. O estudo, por ser privado, não foi dividido com a indústria de mídia e publicidade. Mas o CRO – Chief- Revenue Officer (mais um neologismo para incorporarmos) do The Guardian, Hamish Nicklin, disse, em um debate público, que o nível de receita filtrado pelo sistema que chegou de volta a seus cofres atingiu seu pior nível na faixa de 30% – ou seja, 70% da verba ficou pelo caminho. Como Nicklin disse, “há tantos players diferentes que tomam um pequeno pedaço aqui, um pedaço maior ali, que uma grande parte do dinheiro que os anunciantes acreditam que estão direcionando a editores premium de fato não está ficando para nós”.

Este é mais um sinal relevante para o fato de que está na hora de o setor publicitário passar a entender com mais atenção e consciência o que está transformando uma virtuosa cadeia de valor em uma destrutiva “cadeia de desvalor”, que pode se transformar em um câncer para a atividade.

Rafael Sampaio é consultor em propaganda (rafael.sampaio@uol.com.br)