Não tenho problemas com spoilers. Mesmo sabendo o fim das tramas, se alguém morre ou mata alguém, me interessa mais o caminho do que o destino: como se entrelaçam os acontecimentos, as dimensões de caráter das personagens. Tudo isso para dizer que este texto contém spoilers, que eu sei que muita gente detesta. Quem ainda não assistiu Black Mirror no Netflix talvez deva evitar prosseguir. Ou não. Mas depois não digam que não avisei.

A terceira temporada de Black Mirror segue a linha das primeiras duas: episódios independentes, mas ligados por um fio que os torna irmãos de sangue: a presença implacável da tecnologia na vida das pessoas, transformando suas realidades de um jeito que parece futurista. De um jeito incomum, Black Mirror fala do presente, pois o mundo que escancara “já é” e nos faz reconhecer com certa estupefação aquilo que… já somos.

O primeiro episódio da terceira temporada mostra a potência deste mundo em que, subitamente, você é movido pela aprovação alheia. Sua vida depende, literalmente, de “likes”. Pessoas são rankeadas a cada segundo de suas vidas e por qualquer um. O celular é a ferramenta para dar ou retirar pontos. Para ser respeitado socialmente, é preciso estar acima de uma pontuação X. Quem não chegou lá, mas está próximo, merece algum crédito.

Quem cai muito, seja porque discutiu com alguém num local público ou pagou qualquer tipo de mico, não terá acesso a alugar um apartamento ou ter um bom carro, e a tendência é que o mundo lhe vá gradativamente fechando as portas – a menos que se consiga virar o jogo milagrosamente, realizando algum ato que seja verdadeiramente heroico para ganhar pontos no perverso jogo da reputação. A ironia de tudo isso é que só à “escória humana” – aqueles cuja reputação despencou vertiginosamente – é permitido ser quem se é, genuinamente. Quem não tem nada a perder pode até, quem diria, xingar alguém de quem não gosta. É uma espécie de libertação.

Essa assustadora visão de um mundo ficcional já está ao nosso redor, na vida dos nossos filhos adolescentes, para quem não há fronteiras entre o on e o offline, e a intensa vivência dos avatares de si mesmos reflete sua frágil autoestima. Ronda a nossa rotina cada vez que sacamos o celular para checar quantos “likes” recebeu o nosso último post engraçadinho no Facebook. A boa reputação no mundo virtual nos dá uma sensação empoderamento lisérgica, viciante.

O “fenômeno” ganha contornos nefastos: o governo chinês anunciou um programa de pontuação para cidadãos. De acordo com seu comportamento online e também fora das redes, o cidadão ganhará uma nota que poderá vir a determinar o seu lugar na comunidade. Soa familiar?

Assistir Black Mirror é mandatório se você gosta de tecnologia. Ou mesmo se não gosta, pela sua potência como espelho da nossa sociedade e dos valores que vêm sendo (des)construídos. Gosto daquilo que Stephen Hawking escancara ao definir o vírus de computador como “vida”. Ele disse: “Creio que diz algo sobre a natureza humana, que a única forma de vida que criamos até agora é puramente destrutiva. Nós criamos vida à nossa imagem.” Sim, o vírus somos nós.

Claudia Penteado é jornalista e repórter do PROPMARK