Sergio Valente, diretor de comunicação da Globo, não gosta de falar de passado. Diante da perspectiva de dar uma entrevista cujo foco seriam, principalmente, os 50 anos da TV Globo, ele avisou que gostaria de focar apenas no futuro. Não por acaso: ele foi contratado pela emissora, há pouco mais de dois anos, para fazer isso, e não tem feito outra coisa senão delinear o futuro da marca. Ao se deparar com a perspectiva de fazer balanço do trabalho realizado ou comentar as últimas ações, costuma repetir a seguinte frase: “Se você não está percebendo o que eu estou fazendo, estou ferrado”. Desconcertante, criativo, provocador, sério e comprometido com sua missão de cuidar da relevância da marca TV Globo, Valente recebeu o propmark semana passada para uma longa conversa na qual analisa o que pensa a respeito da TV. “Na disputa de share of life, a receita mais importante do bolo é a relevância”, ele garante. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

AVALIAÇÃO

“Faço parte de um grupo que interfere no dia a dia (óbvio que, no meu caso, especificamente do ponto de vista de comunicação) como a marca que mais tem penetração no Brasil. Ela está na casa de todo mundo de um jeito relevante, interessante. A Globo é uma marca fantástica. O que me atraiu para viver o que estou vivendo é a possibilidade de pegar uma marca extremamente estabelecida, vitoriosa, líder e dizer: ‘what’s next?’ Minha missão é pensar no futuro da marca, mas havia um objetivo muito claro colocado pelo (Carlos) Schroeder, e foi para isso que ele me chamou. Ele me disse: ‘A Globo tem uma forma de comunicar bem-sucedida e vitoriosa. Mas é uma forma de comunicar pela informação. E nós estamos prontos, como Globo, para entrar numa nova fase de comunicar por sedução’. E aí os componentes publicitários são fundamentais. Quando se tem uma estrutura de relacionamento com a imprensa, seja a que cobre a indústria de comunicação, seja a de business, bem-sucedida e vitoriosa. A contribuição é: como trazer elementos publicitários para o dia a dia dessa marca? Para o dia a dia das pessoas, como empacotar melhor os produtos, como trazer todas as ferramentas publicitárias para uma análise de marca e criar produtos, subprodutos e desenvolver a marca sob patamares muito mais sólidos para o futuro. Ou seja: pega-se uma base extremamente sólida e a amplia sob novos conceitos.”

MOVIMENTO

“O cenário não mudou, o cenário muda constantemente. Talvez o grande entendimento da Globo seja compreender esse conceito de movimento, de que uma marca de comunicação, de conteúdo de televisão, uma marca que gera informação e entretenimento para as pessoas, que está tão no dia a dia das pessoas, ou essa marca evolui ou fica para trás. E a sociedade evolui muito rápido. Eu não acho que a sociedade mudou. Eu acho que a sociedade está mudando numa velocidade mais rápida. Eu não acho que vim para cá porque o mundo mudou. O mundo muda todos os dias. O desafio é acompanhar a velocidade dessa mudança. E mais do que acompanhar: ajudar a protagonizar essa mudança, a puxar essa mudança. Essa marca, historicamente, sempre protagonizou as mudanças. Sempre esteve no início das tendências.”

RENOVAÇÃO

“Tenho uma crença: as pessoas escolhem coisas boas. Quanto mais forem boas, mais as pessoas as escolherão. É disputa de share of life, diretamente proporcional à relevância que você entrega para as pessoas. Vou dar um exemplo: houve um ano em que estávamos patrocinando a Campus Party e recebi um telefonema das pessoas do evento pedindo para abrir o sinal da TV Globo porque eles queriam assistir ao final da novela. Será que existe um lugar onde há mais pessoas, teoricamente, avessas à programação de TV que o mundo de interneteiros? Novela é conteúdo bom.”

TV ABERTA

“A TV aberta entrega um pulso das pessoas. Assistir TV é um hábito extremamente gregário. Seja o gregário virtual ou real. Isso dá um pulso, o humor das pessoas. Quando você entra num período de Copa do Mundo, por exemplo, a TV aberta é fundamental. A Copa do Mundo, no ano passado, nunca teve tantas emissoras transmitindo. Por que a Globo tinha uma audiência tão grande, se nunca houve tantas opções? Se ele podia ver de tantas formas diferentes? Se ele não precisava ver naquele horário? Por que não ver o 7 a 1 depois?”

RELÓGIO

“Temos a tendência de falar ‘ah, mas ‘Avenida Brasil’ foi diferente, a Copa do Mundo é diferente’, e por aí vai. No fundo, eu acredito que essa linearidade dá um sentimento de ‘continuum’ na vida das pessoas. De, entre aspas, ‘relógio’. É um relógio emocional. Você precisa do ‘Jornal Nacional’ para saber de alguma notícia que está acontecendo agora? Se não, por que ele tem essa audiência tão grande? Porque é relevante. Porque no fundo você entrega uma agenda. Uma vez dei uma palestra para um grupo de livreiros e disse a eles para prestarem atenção ao que é importante para as pessoas. O conteúdo que entregam. Daí tanto faz ser em papel ou não. Mas lembrem que o papel passa um ‘emocional’ de eternidade para as pessoas, isso vale para jornal, revista, livros.”

FENÔMENO

“Pode-se dizer que as redes sociais são um fenômeno. São. Por isso estamos lá. Estamos, sim, nas redes sociais o tempo todo. Conversamos com a audiência o tempo todo. Escutamos a audiência o tempo todo. Dialogamos com a comunidade o tempo todo e antes das redes sociais. Se pensarmos bem, há quanto tempo temos o CAT (Central de Atendimento ao Telespectador)? 30 anos. Ou seja, a gente já era rede social antes da existência das redes sociais digitais. A gente conversa. E isso é estar atento ao zeitgeist da sociedade. Ao momentum das pessoas. No fundo eu acredito nisso: estamos vivendo um novo boom.”

NETFLIX

“É preciso entender a Globo de duas formas diferentes. Existe a Globo distribuidora e a Globo produtora de conteúdo. São dois lados. No lado produtora é óbvio que estamos prestando atenção nisso, tanto que já se encontra conteúdo da TV Globo no Now. Agora: isso significa que se estará em todos os canais de distribuição de streaming? Não sei. É uma pergunta comercial. Tem de se justificar comercialmente. É preciso perder a ingenuidade de dizer que o conteúdo da TV Globo precisa estar em tudo. Em tudo o que seja possível estar. Em tudo o que seja um bom business estar. Em tudo que faça sentido. Não é simplesmente estar por estar. É preciso estar nos canais inteligentemente, da forma certa, no tempo certo, do jeito certo e no economics certo. Passar a vida botando azeitona na empada dos outros é idiotice. Empresarialmente é idiotice. É preciso pensar como geradora de conteúdo e como distribuidora de conteúdo. Isso é pensar uma marca. Marca não é um logo. É uma voz, uma alma – que é consequência de um pensamento de futuro de uma corporação. Marca não é o presente. É onde estará o futuro.”

NOVAS GERAÇÕES

“Primeiro é preciso conversar com todo mundo. Mesmo para quem você não gera conteúdo diretamente. O conteúdo da Globo é gerado para todo mundo. É TV aberta. No fundo o que fizemos por opção foi diminuir – pois não temos como prioridade – a geração de conteúdo infantil. Não significa que não se gere conteúdo para o público infantil. São duas coisas completamente diferentes. Gerar conteúdo infantil, nós acreditamos, há canais que o fazem hoje, e procurados pelo público infantil. Conversar com o público infantil, criar condições de conexão com ele, pode-se construir na tela e fora dela. E aí a Globo precisa fazer isso estrategicamente, porque vai criar seu vínculo com o consumidor do futuro. É preciso ter uma estratégia de conexão com esse público. A TV aberta é um instrumento essencialmente da coletividade. E as crianças fazem parte dessa coletividade. Esse não é um veículo individual, embora ele possa ser consumido individualmente.”

TELA PARTICULAR

“As coisas se individualizaram também. Cada um pode ter uma tela particular. Há outras coletividades. Minha filha conversa comigo pelo WhatsApp no quarto ao lado. No fundo temos de entender esse zeitgeist. Há uma coletividade que também acontece nas salas virtuais. O mundo não é exclusivo. É inclusivo. Você inclui novas possibilidades – o que não significa que se matam possibilidades.”

EVOLUÇÃO

“Acho que morre quem não entende o movimento. Eu li outro dia que a câmera digital foi proposta para a Kodak e recusada por ela mesmo. É preciso estar atento para não ser a Kodak e recusar a câmera digital. É preciso evoluir. Para isso, é preciso conversar, escutar. E aí eu fico contente de olhar a Globo e ver que a empresa que me acolheu é uma empresa que respeita uma das coisas mais importantes do corpo humano: temos dois ouvidos, duas orelhas, duas narinas e uma boca. Está claro, simbolicamente claro, que é preciso escutar mais do que falar. Olhar e cheirar mais do que falar. A Globo está atenta. Às redes sociais, às tendências, ao que acontece no mundo, ao que acontece agora na vida das pessoas. Para isso faz muitas pesquisas, escuta, tem muita interlocução. Isso é uma marca viva. A marca viva não vive o presente. Vive o amanhã.”

LEGADO

“O Schroeder está construindo um grande legado na história da Globo. Se alguém há três anos me dissesse: nos próximos três anos você vai implantar um sentimento de Copa do Mundo, implantar um sentimento de Olimpíada, modificar – mudar mesmo, objetivamente – uma das marcas estabelecidas e com maior penetração do país, vai criar o maior evento de lançamento de programação da história dessa emissora e ainda transformar essa marca em uma marca social… Eu diria: ‘Rapaz, você é um mentiroso danado!’. Mas foi o que aconteceu nos últimos anos. Isso para dizer só os grandes movimentos da comunicação. Criamos o ‘vem aí’, mudamos a marca da TV Globo, criamos o ‘somos um só’ da Copa do Mundo, os filmes da Copa, estamos lançando a Olimpíada e celebrando os 50 anos. E ainda lançamos produtos extremamente vitoriosos, mudamos a cor da marca, o tom de voz da marca, o jeito de a marca falar, o jeito de a marca se comunicar. Há poucos dias, lançamos, em Brasília, a TV digital! Lançamos o ‘Menos é Mais’, uma plataforma de sustentabilidade. Chego a ficar cansado de contar. Sou uma contradição do meu espírito baiano porque olho para isso e digo ‘nossa, que tesão, o que mais tem de fazer?’ Queríamos fazer o mercado publicitário olhar para o que a Globo está fazendo de propaganda e dizer ‘nossa, que bacana’. Participar dessa mudança é uma coisa muito forte.”

CONSTRUÇÃO

“Olhando especificamente para a área de comunicação, temos uma diretora de criação genial (Mariana Sá), que eu trouxe para o grupo. Uma pessoa que manja de estratégia e de entendimento, uma pessoa que entende tudo de social, que não é uma ferramenta. Constrói-se uma marca com três vetores: a marca, os produtos da marca e a relação dela com a sociedade. São esses três aspectos que precisam ser geridos e é preciso pessoas que entreguem isso. Para a marca e os produtos é preciso ter um time fantástico,  que desenvolva as campanhas e o produto. Que faça os filmes, as vinhetas, os desenhos de marca. Tenho uma equipe fantástica, uma produção esmerada. O produto está coberto. O segundo vetor: não adianta fazer um produto fantástico se você não souber para quem o está fazendo e a relação dele com as necessidades da empresa: trouxe a Carla Sá, que entende bastante disso e responde por toda a parte de planejamento e atendimento. Porque é para onde a marca vai e quais são suas necessidades no dia a dia. No lado social, a Beatriz Azeredo é uma craque, que já fazia um trabalho brilhante. Só demos um foco diferente para as ações. Na parte de relacionamento com os diversos públicos, os stakeholders, que chamamos de Relacionamento, estão sob o comando da Andrea Doti. Ou seja: sou mandado por quatro mulheres aqui o tempo todo.”

TALENTO

“Por que a Globo consegue ser o que é? Porque temos, primeiro, um profundo e animal respeito ao talento. Nós sabemos que somos o que somos porque precisamos ser sempre uma casa de talentos. Em tudo o que eu observo, vejo preocupação de continuar retendo, desenvolvendo e atraindo os melhores talentos. A segunda coisa: um profundo respeito pela indústria publicitária, que é nossa cliente. É fundamental prover o mercado de momentos de relevância para que as marcas se manifestem de uma forma digna e eficiente.  A terceira coisa é um profundo respeito ao Brasil. Olhamos o mundo, mas com foco no Brasil. E uma sede, uma fome enorme de inovação. De entender para onde as coisas estão indo. Estudar e surfar as ondas quando elas estão começando. No ano passado, veiculamos uma série toda captada em 4K. As pessoas ainda não têm 4K para perceber toda a qualidade do que estamos provendo. É um sinalizador do que é a Globo. A TV Globo é uma casa fascinante.”

EQUILÍBRIO

“Se é importante para a sociedade, se está no diapasão da sociedade, se está no zeitgeist da sociedade, tem de estar na Globo. Claro que há perdas, como em toda ousadia. Às vezes se vai um pouco demais, se ajusta, volta um pouco. Encontra-se o equilíbrio. Mas a sociedade demanda isso. Essa instigação. Senão ficamos no déjà-vu. É claro que é preciso gerar alguma zona de conforto, mas a sociedade busca isso. É um tamanho de minissaia, um passe de futebol, um drible a mais. É possível fazer um gol sem drible, mas é muito mais encantador quando ele existe. Às vezes se erra o drible. Às vezes o gol é de bico. Mas tenta-se de novo, para acertar. O conteúdo é como uma piscina de muitas profundidades: precisa ter uma zona em que todos podem ficar em pé confortavelmente. Mas precisa ter algumas profundidades maiores que desafiem as pessoas a nadar. A Globo demanda experimentação. Se você não puxar cordas, será que as pessoas vão lhe acompanhar? Não se deve ficar confortável, senão vira tiozinho.”

MARCOS

“Todos os momentos em que esta emissora pensou no futuro. Ousou, fez diferente, projetou o futuro. Todo o sonho de design diferente que o Hans Donner teve, de fazer uma abertura ousada e diferente para a época, quando descascou uma banana com uma mulher dentro. Ao construir o Projac lá em Curicica, longe à beça, há 30 anos. Olha que visão de futuro! Quando o Teatro Fênix pegou fogo e as pessoas correram para tirar os filmes do fogo, salvar os materiais. Isso é apontar para o futuro. Abrir espaço para que Chacrinha enfernizasse o domingo com seu ‘Cassino’. Foi pensar no futuro. Permitir beijos ardorosos quando as pessoas só faziam bitoquinhas na televisão. Há um ano, quando vejo a empresa trazer redatores incríveis para dar workshops aqui dentro. Quando cria o ‘Telecurso’, um canal de disseminação do conhecimento – isso é apontar para o futuro. Todos esses foram grandes momentos da história dessa empresa. E eu acho bárbaro fazer parte de um grupo que está pensando no que vai fazer no ano que vem, na próxima revolução. What’s next?”