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O maior criativo da Croisette

Muito antes do Cannes Lions começar, um criativo já vivia circulando pela Croisette e ladeiras do “Peloran”: Pablo Picasso. O artista espanhol viveu em Cannes e em Aix-en-Provence a partir de 1959. E parece ter tido muito em comum com os publicitários que invadiriam a região nas décadas seguintes.

Primeiro, Picasso também adorava visibilidade e badalação. Não perdia a chance de dar uma entrevista e se vendia como ninguém. Inclusive, reservava as manhãs para receber jornalistas, clientes, amigos e famosos em seu ateliê.

Mesmo dedicando tanto tempo ao social, Picasso trabalhava feito um… publicitário. Adepto da máxima “a qualidade vem da quantidade”, varava noites em busca das melhores ideias. Estima-se que tenha produzido mais de 40 mil obras diferentes ao longo da sua vida. Certa vez, um visitante estupefato olhava dezenas de cabeças praticamente iguais de um homem fumando. “Pra que fazer tantas?”, perguntou. Ao que Picasso respondeu: “É preciso fazer, fazer e fazer mais cabeças. É à força de fazer muito que se chega a qualquer coisa”.

A publicidade brasileira só atingiu o patamar de potência mundial porque seus criativos sempre produziram em escala industrial. Lembro-me de fazer 300 títulos para chegar a um bom, e uma centena de roteiros para encontrar o “marvado”.

Como nossa classe, Picasso vivia criticando a onda do politicamente correto, que – ora, veja você – já existia na década de 1940: “O que é terrível hoje em dia é ninguém dizer mal de ninguém. Se acreditássemos em tudo que lemos, pensaríamos que tudo vai bem. Em todas as exposições, segundo o que lemos, há sempre qualquer coisa de bom. Tudo é mais ou menos igual, nada é posto por terra, tudo se encontra no mesmo nível. Por quê?”. Como um legítimo criativo atual, “integrado”, como dizemos, Picasso criava para diversas plataformas: escultura, pintura, desenho e até poesia. Sua “Guernica” é o anúncio visual definitivo contra a guerra.

Até na angústia de criar, temos semelhanças: “No fundo, o mais terrível para um pintor é a tela branca”, dizia ele. Contudo, além da enorme distância entre arte e propaganda, Picasso também tinha muitas diferenças em relação aos criativos das agências. A começar, não acreditava que mais liberdade criativa resultaria, necessariamente, em trabalhos melhores: “Quando nos julgamos menos livres é que somos, por vezes, mais livres”.

Explicando melhor, em suas próprias palavras: “A liberdade, é preciso ter muito cuidado com ela. Na pintura, como em tudo o mais. Façamos o que fizermos, encontramo-nos sempre com algemas. A liberdade de não fazer uma coisa exige que se faça outra obrigatoriamente. E, então, já estamos algemados novamente. Isso recorda-me a história de Jarry: quando os soldados libertários faziam os seus exercícios, o oficial dizia-lhes: meia volta à direita. Mas como eram libertários, faziam todos juntos meia volta à esquerda. A pintura também é assim”. E a publicidade também é assim. As famosas “tendências de Cannes” fazem com que todo mundo corra para o mesmo lado ao mesmo tempo. O que ganhou Leão num ano acaba servindo de “guia” para a produção do ano seguinte. E então lá estamos nós, novamente, todos algemados.

Ainda sobre liberdade, é comum ver adultos invejando as crianças com o argumento de que “elas sim são livres para criar”. Mais uma vez, vem Picasso a desconcertar-nos: “As crianças não são livres. Na realidade, são obrigadas a fazer desenhos de crianças. São forçadas a aprender a fazê-los. Têm mesmo de aprender a fazer desenhos infantis, que são abstratos… Na verdade, com o pretexto de lhes deixar a liberdade, de não as entravar, as crianças são fechadas no seu gênero, com as suas algemas”.

O espanhol certamente reprovaria o rigor com que acusamos o outro de “chupar” ou decretar que “isso já foi feito”. Picasso defendia abertamente que os artistas devem roubar ideias. Mas não confunda com copiar. Roubar é pegar algo e fazer melhor (dizem que foi isso que ele fez com as telas cubistas de Braque). Já copiar é simplesmente imitar, repetir, sem nada acrescentar. Segundo o gênio, não se chega a lugar nenhum copiando: “Cézanne e Van Gogh nem por um segundo queriam fazer aquilo que hoje se vê nas telas de Cézanne ou de Van Gogh. Eles queriam ser fiéis àquilo que viam. Faziam um grande esforço e tudo o que de mais belo faziam no mundo só conseguiam fazer por não poder fazer de outra maneira e, então, passaram a ser Cézanne e Van Gogh”.

Outra diferença fundamental entre Picasso e publicitários é sua relação com os troféus. Enquanto nossa classe gosta de colocar seus Leões bem à vista, o artista fazia o contrário: deixava exposto seus piores trabalhos. Certa vez, pendurou um quadro de uma paisagem sobre uma porta e disse: “Eu não gosto nada dele. Acho mesmo horrível. E quando o pendurei em cima daquela porta, acredite, não foi por gostar dele, pelo contrário. Considero-o tão ruim que o trouxe ao ateliê como uma espécie de penitência. E enforquei-o ali, até que a sua morte chegue”.

De fato, os grandes trabalhos de Cannes podem inibir e até desanimar. Sob a mentalidade de “ah, não dá para competir; na Europa é diferente; eles têm prazo, dinheiro; não tem como fazer isso no Brasil”, o sujeito joga a toalha. Agora, se você tentar ser melhor que você mesmo no trabalho seguinte, com certeza avançará em qualidade.

Dá para sobreviver sem ganhar Leão? Claro. Existem trabalhos brilhantes que nunca serão premiados. Nem por isso terão menos valor. Cannes é, sem discussão, a principal referência da comunicação no planeta. Mas, como a própria propaganda, é descartável. Durante uma semana, os holofotes miram para lá. As pessoas acompanham ansiosas os resultados de cada categoria. Mas a maldição é que, já no dia seguinte ao término do evento, todos os jornais, revistas, folhetos e publicações de publicidade que lotam os lobbies dos hotéis da cidade francesa são recolhidos e jogados fora: no lixo.

Depois disso, vamos falar a verdade, poucos se recordam dos resultados. Gravamos na memória um ou outro Leão, mas a quase totalidade nem mais é lembrada. Alguns poucos tornam-se clássicos, mas a grande maioria é varrida do mundo para sempre, só sendo lembrada para desclassificar peças futuras.

Ao contrário de Picasso, que entrou para a história, nós provavelmente seremos esquecidos como nossos próprios anúncios. Então, vale a pena tanto esforço? Se a gente se divertir pelo percurso, sim. Isso significa comparecer às edições do Festival, comemorar as vitórias, aprender com as derrotas. E nunca deixar de mergulhar naquele lindo mar da Riviera Francesa.

 

*presidente da Age