O avião fretado pela Chapecoense levava, além dos jogadores, integrantes da equipe técnica, dirigentes e alguns jornalistas convidados, entre eles Rafael Henzel, um radialista gaúcho, que trabalhava na Rádio Oeste Capital, em Chapecó, locutor muito conhecido na cidade. Todos estavam indo para Medelin, onde o time da Chapecoense jogaria contra a equipe local. Nunca o time literalmente fora tão longe. Era o jogo decisivo para a Copa Sul-Americana. Caso a Chapecoense ganhasse, e a equipe já estava acostumada a ganhar, seria um dos maiores feitos, entre os times considerados pequenos, de toda história do futebol brasileiro. O clima era de euforia.

A delegação saiu de Chapecó como um grupo de heróis capazes de reescrever a história do futebol no Brasil. Para a cidade de tamanho médio, para os jogadores e dirigentes, tudo soava como aventura. Clube com poucos recursos, se comparado com os grandes das capitais, a Chapecoense tinha ido muito mais longe do que poderia sonhar. Seria a maior e mais gloriosa jornada já empreendida por uma agremiação de seu porte. Talvez o Santos, vá lá. Mas além de a cidade de Santos ser maior, contou com a incrível bênção de ter em sua equipe o melhor jogador de futebol de todos os tempos, o que invalida qualquer comparação.

Enquanto a cidade de Chapecó e o time de futebol viviam a expectativa para o jogo, os dirigentes se ocupavam em conseguir o voo mais barato para a delegação. Cada centavo economizado fazia muita diferença. Uma concorrência de preços fez com que a companhia LaMia fosse a vencedora para levar os jogadores de Santa Cruz de La Sierra para a capital colombiana. Era uma empresa já conhecida pelo clube, cobrava preços baixos e ainda por cima ofereceu como brinde a adesivação da aeronave com as cores e o escudo da Chapecoense. Rafael era amigo de todo mundo no avião. Além de radialista conhecido, era um boa gente. Durante a viagem foi pulando de banco em banco, para conversar e até mesmo por uma brincadeira entre os jogadores, que várias vezes o expulsaram das poltronas que sentava por motivos fúteis, como por exemplo proibi-lo de ficar no mesmo lugar que um dia fora ocupado por Leonel Messi. E assim acabou ficando numa poltrona do meio na última fileira. E foi por estar lá que sobreviveu.

Essa experiência, de não ter morrido por um detalhe, fez Rafael pensar muito na vida. Escreveu um livro, que eu participei da elaboração final e da própria criação do título: Viva como se estivesse de partida. Contratado pela Editora Globo, contribuí na criação da capa, de autoria final da Maria Clara Thedim, e dei meus pitacos na contracapa e nos textos da orelha. O livro, em resumo, traz as reflexões de alguém que, por ter visto a morte de perto, pensou muito na vida. É um livro pequeno, 120 páginas, mas é um convite para a gente pensar que num instante tudo pode acabar para nós e essa consciência pode servir para alguma coisa enquanto estivermos por aqui.

Vendeu razoavelmente e Rafael tocou sua vida, voltando para sua emissora e tentando aproveitar ao máximo a prorrogação de seu tempo de existência. Mas tal como no futebol, a vida é uma caixinha de surpresas. Na semana passada, jogando uma pelada com os amigos, teve um ataque cardíaco e morreu. Tinha chegado a sua hora. Ontem fui reler o livro e abri a esmo. Na página que li, o autor reflete sobre a razão de estar vivo. E escreve: “são várias correntes de pensamento das quais as pessoas se alimentam. Elas têm de acreditar em alguma coisa. Naquela viagem, aparentemente a missão de todos já estava completa na terra, ao contrário da minha (…) nós saímos de São Paulo em um grupo de 77 pessoas e apenas seis entre nós voltaram com vida. Quantos abraços não foram dados, quantas brigas não foram resolvidas, quantas picuinhas bobas não ficaram no ar? Quantas coisas foram deixadas para trás? (…) Penso muito no que me fez estar aqui e qual a missão que isso acarretou. Todos nós temos uma missão”.

Claro que aos espíritos mais céticos – e eles são muitos – não há uma única descoberta para fazer neste caso. Ele sobreviveu, passou um ano vivo, escreveu um livro e morreu jogando futebol. Mas se a vida fosse só isso, pensando bem, que graça teria?

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)