Existe um fenômeno corriqueiro no mundo da propaganda denominado “concorrência”. Deixando de lado o complexo mundo das concorrências públicas, numa disputa comum, privada, em geral uma empresa interessada em contratar os serviços de uma agência de propaganda convida algumas para participar de um processo de seleção. Tudo ocorre como se já houvesse uma parceria entre elas – com a desvantagem do distanciamento e a falta de intimidade: a empresa passa um briefing e aguarda que as agências candidatas apresentem propostas, muitas vezes campanhas já bastante adiantadas. São as chamadas concorrências especulativas.

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Especulação é, no dicionário, o mesmo que “análise sem fundamentos empíricos e baseada no raciocínio abstrato”. É sinônimo de pressuposição. Concorrências ocupam em geral um naco bastante generoso do budget das agências: os investimentos podem chegar a R$ 500 mil em um só processo. É coisa séria, importante. Participar é do jogo: muitas vezes a única maneira de crescer, ingressar em novos segmentos de mercado, se tornar mais conhecido. Quase toda semana há notícias sobre concorrências. Agências “ganhando” concorrências – enquanto tantas outras “perdem”: muitas vezes três, quatro ou até mais que estavam “na disputa”. Em um país que testa sua ética e põe no fogo seus valores, não custa mergulhar nesse imenso caldeirão que tanta energia ocupa de profissionais dedicados a construir marcas e a ajudar empresas a obter lucro no mundo real – bem longe do universo especulativo.

Curiosamente, quem promove concorrências prefere, em geral, não falar sobre o tema. Dezenas de anunciantes foram procurados, mas, educadamente, declinaram do convite de conversar sobre o assunto. A ABA (Associação Brasileira de Anunciantes) também preferiu não falar, afirmando, por meio de sua assessoria, que, após consulta, decidiu não participar desta pauta “já que não atua nessa questão nem faz concorrências”.

A intenção era responder a algumas perguntas básicas, como, por exemplo: será que algo mudou, ao longo do tempo, no universo das concorrências? Por que os anunciantes gostam de promovê-las, de tempos em tempos, e por que as agências participam delas mesmo sem receber qualquer remuneração pelo trabalho produzido?

VÍCIO

A resposta é, lembrando Cazuza, que o tempo não para – mas o mercado segue repetindo o passado, sem grandes novidades. Mario D’Andrea, presidente da Abap (Associação das Agências de Publicidade), define os processos de concorrência não remunerados como “um vício danoso ao mercado” e em outros mercados paga-se um fee mínimo, que serve muitas vezes para inibir a quantidade de convites às agências. Como se uma pessoa quisesse comprar um carro, mas não tem a menor ideia de qual tipo atende à sua necessidade – e na dúvida entra em qualquer concessionária.

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“O que se vê é uma grande mistura e uma seleção sem muito critério, colocando na mesma disputa agências de tamanhos e perfis completamente diferentes”, comenta, lembrando que nas concorrências os clientes vêem, de graça, o principal asset de uma agência: talento, ideias e inteligência.

Gal Barradas, sócia e co-CEO da BETC/Havas, concorda com D’Andrea: um limite de três agências de perfis parecidos seria mais saudável, bem como remuneração, prazos mais justos e o feedback também seriam bem-vindos. “É desgastante ter de implorar por um feedback do por que ganhamos ou perdemos um pitch”, observa.

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Ela conta já ter passado por situações “bizarras” como receber a ligação de um prospect na véspera da apresentação dizendo já ter escolhido a agência, tomar conhecimento do resultado de um pitch por meio de um anúncio no jornal ou ser avisada do cancelamento de uma concorrência depois que todas as agências terem apresentado suas propostas.

A consultora Graziela Di Giorgi, diretora de inovação da Scopen, concorda que o método mais popular (não remunerado) é “um vício do próprio mercado”, que o jeito convencional de se fazer é “bastante questionável”. Na sua empresa, que auxilia em processos do gênero, ela propõe novos modelos que não exijam, por exemplo, produção de entrega criativa, para tornar o método de escolha mais justo – uma vez que a remuneração, mesmo quando existe, não cobre todos os custos de produção. Segundo ela, quem passa pelo novo modelo de seleção, em geral, indica para outros anunciantes. Clientes que contratam consultorias nesses casos ainda são minoria.

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Fernando Figueiredo, CEO da Bullet, lembra que “ agência que não faz conta, quebra”.  Segundo ele, na Bullet uma concorrência é encarada como um processo natural de new business.

“Para isso entendemos o cliente, as chances, a verba e o nosso investimento. Temos uma ferramenta interna para isso, que nos dá um grade, uma nota de concorrência. E com base nisso entramos ou não. Investimos mais ou menos”, revela. 

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OPINIÕES

Fernando Musa, presidente do grupo Ogilvy Brasil, afirma que já existe um “aperfeiçoamento” das concorrências, mas ainda o mercado não chegou lá. As etapas não fogem muito da entrega de trabalho sobre um briefing e da negociação de preço. “A grande discussão aqui é o quanto as agências deveriam avançar ou não nas propostas técnicas. Isso é um trabalho especulativo e o anunciante acaba tendo, de uma maneira ou de outra, 3, 4, 5 opiniões sobre o problema dele. É aqui que cabe a discussão mais ampla no mercado. Mas vai de cada um escolher quais processos quer ou não participar”, comenta Musa.

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O feedback das concorrências costuma ser uma área nebulosa nos processos de concorrência. Mauro Rabello, COO e vice-presidente da Dentsu Brasil, afirma que o feedback, mesmo num processo em que se perde, seria uma espécie de “prêmio de consolação mínimo” para ajudar a agência a aprender e possivelmente auxiliar numa futura empreitada, uma vez que o material e o estudo desenvolvidos têm pouca ou quase nenhuma aplicação. “Infelizmente os principais beneficiados no processo são os anunciantes, que ganham, nas concorrências, consultoria e inteligência de altíssimo nível e de graça”, lamenta.

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A Hands estabeleceu que concorrências não podem utilizar mais do que 10% do tempo rotativo da agência. “Os processos não podem depreciar o tempo dedicado ao atendimento dos nossos clientes”, observa Marcelo Lenhard, CEO da agência, que em muitos casos já desistiu de processos no meio do caminho por não aceitar as condições comerciais estabelecidas. “Já houve um caso em que o próprio cliente voltou atrás, percebendo que o barato sai caro”, analisa.

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Uma prática comum dentro das agências é contratar uma equipe terceirizada para tocá-la, uma espécie de subversão que faz com que boa parte do que se apresenta para o prospect esteja distante daquilo que a agência de fato oferece. “No nosso caso, terceirizamos apenas pesquisas e consultorias que possa ajudar a arrecadar informações no curto tempo da concorrência”, diz Martin Montoya, presidente da WMcCann, que lamenta as concorrências e que os anunciantes exijam propostas tão completas, que poderiam representar facilmente um ou dois anos de trabalho para a marca. “O motivo por que as agências acabam topando, mesmo sem essa compensação, é ser o úncio jeito de não ficar de fora do mercado”.

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Remuneração, número máximo de participantes, briefing e verbas claras e reais, condições e prazos adequados são algumas das demandas das agências para o que seria o “mundo ideal” das concorrências. Mas o que mais se discute, de fato, é a efetividade dos processos. “O processo de concorrência é antigo e antiquado. Vai contra tudo o que o mercado parece acreditar que seja o papel da comunicação atualmente. Por que não investir todo o tempo de esforços para criar trabalhos especulativos em reuniões, conversas profundas com cada agência? Sobre a marca, sobre como cada um entende comunicação?”, sugere Rafael Ferrer, sócio e diretor de criação da agência Quintal.

Para David Laloum, CEO da Y&R, mais importante do que a remuneração é a seriedade, a transparência e o profissionalismo dos anunciantes ao promover concorrências. “Muitas vezes concorrências têm como objetivo principal – às vezes único – renegociação da remuneração com a agência atual, fazendo com que os critérios fundamentais de uma agência (time, capacidade estratégica e criativa, resultados e parceria) sejam marginalizados”.

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