Um dia Gilberto Gil me contou que sua fase como funcionário da Lever (hoje Unilever) foi de grande utilidade na música. Ele se referia ao tempo que, como estagiário no marketing, conviveu com jinglistas que lhe revelaram os segredos (ou a necessidade) da construção de letras e melodias que se tornassem inesquecíveis, repetíveis (cantabiles) e – no caso do jingle – ainda tivessem um significado que refletisse a qualidade do produto anunciado. Gil acreditava que era necessário uma dose de gênio para encontrar a solução para problemas complexos como esses, já que o lado utilitário do jingle não permite que ele possa ter só uma dessas qualidades.

O pior de tudo é que, depois da criação, o jingle parece simples, uma “musiquinha” como alguns críticos costumavam chamar. Há algo de jingle em boa parte da produção de Gil. A lista dos compositores que ganharam um dinheirinho criando jingle é vasta, começando por Tom Jobim e passando por quase todos os ídolos do passado e grande parte do presente, com algumas raras exceções como Chico Buarque, que é tão teimoso que reluta até em ceder músicas de sua autoria para servirem de trilhas a comerciais. Um dos autores de jingles mais assíduos foi Antonio Maria, cujo currículo como músico é do conhecimento de todos, considerado o rei do samba-canção, além de autor de teatro e cronista. Uma vez, Maria foi chamado para fazer um jingle para um produto chamado Regulador Xavier, destinado a justamente regular o fluxo menstrual (o slogan era Regulador Xavier – a saúde da mulher).

O tal regulador poderia ser encontrado em duas versões: número 1, para excesso; e número 2, para escassez. Estava ele tentando achar uma solução para um assunto tão delicado quando veio buscá-lo para sair a fabulosa Aracy de Almeida, a Araca, Arquiduquesa do Encantado, pessoa da qual jamais restou qualquer dúvida, segundo ela própria. Maria, para acabar logo o serviço, pediu ajuda à grande cantora, que veio com a solução em menos de um minuto. A ideia dela foi parodiar um samba de Noel Rosa que estava fazendo muito sucesso e cantou, empolgada com sua criação: “O ovário vem caindo…”. Noel, diga-se de passagem, era também um jinglista respeitado. Mas jamais soube da sugestão de Aracy. Em outra ocasião, pedi para o Passarinho (Edson Borges) um jingle para nosso cliente Café Palheta, líder de vendas no Rio de Janeiro. Passarinho tinha uma voz rouquenha, que tornava um pouco difícil a compreensão quando registrada nos velhos gravadores portáteis da época. E mandou uma demonstração com ele cantando. Jingle excelente, como sempre, aprovado na hora pela criação. Eu estava fora, mas conhecia a qualidade do Passarinho e confiei na criação. Mandamos imediatamente a fita demonstração para o cliente. Poucas horas depois recebi uma ligação do diretor de propaganda do café, que me disse: “Lula, o que deu em vocês?” Foi preciso acalmar o cliente para descobrir que ele tinha entendido que o mote do jingle era: “O café que todo mundo gosta desde o tempo da punheta”.

Ele compreendia que a intenção era revelar uma longa vida em comum, embora achasse que poderia haver uma metáfora mais leve e simpática do que caracterizar a juventude como “tempo da punheta”. Achei que deveria ter sido um engano e que o Passarinho tinha mandado uma versão que fizera na brincadeira, que o jingle de verdade era outro, que eu ia ver o que houve. E descobri que ouvindo até o fim se percebia que Palheta era o nome do fazendeiro que criara a marca e era o xodó do consumidor, desde esse tempo. Já estava pronto para pedir outro jingle para o Passarinho quando o cliente voltou a ligar dizendo que tinha ouvido a obra inteira com atenção, entendido tudo e que a confusão era ótima, pois o pessoal ia cantar a versão incorreta e isso tornaria o jingle famoso. Recomendou até que o cantor não se preocupasse com a pronúncia, para que todo mundo tivesse a mesma reação que ele. Foi só eu contar esse diálogo para o Passarinho para ele sugerir que a assinatura do locutor poderia ser: Seja você também um palheteiro. Daí eu achei que era demais.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)