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Continuo aqui na Cinelândia olhando a vida passar pela minha janela enquanto trabalho. Ou tento fazê-lo, pois a barulheira geral entra pelas paredes insistindo em me distrair. Todo dia é uma manifestação, a favor e contra tudo que é possível ser a favor ou contra. Hoje é a CUT e meia dúzia de sindicatos, tentando destruir a Rede Globo (porra, não dá para falar da Rede TV? Ou da Band? Isso é fixação freudiana…). A coleção de banalidades chega a ser dolorosa, principalmente porque muitos dos oradores se dizem professores. E destroem a última flor do Lácio com a mesma desfaçatez que mudam a história, os pilares da economia e a lógica. Sou obrigado a ouvir que a classe média apoia o impeachment porque não quer pobre nos aviões nem pretos na faculdade. Súbito, uma explosão de aplausos. Vem chegando o Batman, completamente paramentado.

É saudado pelos oradores e convidado a subir no carro de som. Palmas. Batman escala e chega ao teto do carro. Mais palmas. Abre os braços e a turba vai ao delírio. Daí ele abre um cartaz: “Fora Dilma!” A plateia saqueia os ambulantes e joga garrafas de água no Batman. Gothan City está em crise. Chamam a polícia. Diz um orador: “ele está mascarado! É proibido”! Ou seja, mascarado do nosso lado pode, inimigo não pode. Vem a polícia. Só falta o Comissário Gordon. Tiram o Batman do teto do carro de som. Ele sai, provocando a torcida. Vaiado, ofendido, xingado de morcego viado, palhaço de merda. Nem nos quadrinhos personagem algum foi da glória ao lixo tão rápido. Um orador pega o microfone. Começa a gritar: “patrões filhos da puta, coxinhas do caralho, vão se fudê, vão tomar no cu!” Cortam o som. Vem um outro orador, com voz conciliadora e começa: “a gente tem que entendê que os coxinha tá provocano a gente e a gente reage. Num vai ter golpe, mas a gente tem de não perder a tranqulidade porque esses facista filho da puta quer isso, que a gente perda a educação…”.

Um orador fala de “golpe legal”. Outro afirma que a direita destruiu a Venezuela. Todos não querem pagar as dívidas com os bancos internacionais, pois é essa a desgraça do país. Outro afirma que a terceirização é o fim de todas as conquistas dos trabalhadores, o Fundo de Garantia, as férias e a licença-maternidade. Agora alguém canta “avante o populo alla riscossa”, desafinadíssimo. Percebo que se trata de um velho, pois brada que a bandiera rossa triunfará. O importante é que a luta continua.

Observo uma aglomeração inusual em torno de um ambulante. Ajusto meu binóculo para ver a razão de seu sucesso, já que outros camelôs não conseguem atrair tanta gente. Ele tem uma TV ligada sobre um burro sem rabo, acionada por um geradorzinho, e vende latinhas de Coca-Cola, Doritos e Paçoquita. O pessoal se aglomera para ver a novela e os flashes dos noticiários da Globo, que de vez em quando entra ao vivo diretamente da praça. Pelo ângulo da tomada, descobriram que a câmera estava instalada na cobertura de meu prédio. Alguns, quando a Globo transmite, acenam entusiasmados. Outros mostram o dedo médio. O povo não é bobo… Acho que podemos, sim, dar um tempo ao Temer. Ou temer o tempo e pedir ao tempo todo tempo que o tempo tem. Temos que temer a trama de uma presidenta em tecla pausa, tramando contra. Temos de temer o Temer fazendo tudo para ficar mais tempo. Temos de temer as trocas, pois os que foram e os que ficam só querem um troco. Temos de não ficar só fazendo troça, mas entender o truque. Olho vivo, pois.

Que se registre um adeus sentido ao Paulo Salles e um abraço à sua família. Ele era um cara profundamente otimista e alegre, de bem com a vida. A missa por sua alma, aqui no Rio de Janeiro, foi dia 17. O trânsito do Rio me impediu de chegar a tempo. Mas alguns amigos e a prima dele, Anatê, minha comadre, nos encontramos em minha casa para falar um pouco de suas histórias, como se tentássemos obrigá-lo a ficar mais tempo entre nós. Eu nunca vou entender a morte e tenho certeza que jamais me darei bem com ela. A sensação de que os da nossa turma aos poucos estão partindo, faz parte da idade, mas de vez em quando surge o inexplicável. E, além da tristeza, fica a dolorosa sensação de que, mesmo já tendo visto e vivido muita coisa, a gente nunca sabe realmente de nada.

Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor