Parei de beber. Esta foi a notícia que dei para minha mulher no nosso apartamento em Cannes, quando voltei do meu primeiro dia como jurado do festival. Não bebo mais. A reação de Silvana transitou entre a euforia e a estranheza. O que teria feito este cara, no seu primeiro dia como jurado, num ambiente tenso como o de um júri internacional, tomar uma decisão tão radical? O que ocorreu naquele palácio que alterou completamente a visão de vida desse indivíduo?

Neste momento, consciente da profundeza de minha declaração, atravessei a sala da suíte, abri a geladeira e me servi de uma taça de um Pomerol que desde manhã me esperava. Minha mulher teve, naquele minuto, a certeza absoluta que eu – finalmente – tinha ficado louco. Entendo. Ela achou que a tensão me tinha levado à ruptura definitiva: finalmente tinha saído do ar. Só um doido (ou um bufão) declararia com toda pompa que tinha tomado a decisão de parar de beber e comemorava a atitude abrindo uma garrafa de vinho. “Ele agora foi”, deve ter pensado Silvana, já imaginando que minha próxima providência seria sair voando pela janela, em busca do horizonte dourado do Mediterrâneo.

Pessoa sensata nessa hora não cria polêmica. Ganha tempo, na espera de que um mínimo de bom senso acabe florescendo. “Lula – disse ela – como foi seu primeiro dia de júri?”. Nessa altura, percebi, a pergunta era uma manobra diversionista, uma retórica, destinada apenas a ganhar tempo. O ponto crucial era a afirmação categórica da mudança de um hábito, num momento aparentemente inoportuno. Não é em Cannes que se resolve deixar de beber. Então, contei meu primeiro dia como jurado. Daí vai ser possível entender tudo. Foi o seguinte: éramos uns 20, de muitos países, de Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo, falando inglês nos mais diversos matizes e acentos, quase todos com uma qualidade que faria Oscar Wilde morrer outra vez.

Tudo em Cannes tem a aparência de uma convenção de multinacional. Nada dá errado, todo mundo de alguma forma cumpre seu papel. Festivais e eventos se realizam na cidade todos os dias, há um know-how de Ilha da Fantasia digno de respeito. No caso do festival de publicidade, os profissionais são irretocáveis, desde a simpatia pessoal até o funcionamento milimétrico. Não há espaços para improvisos: as coisas ocorrem na hora certa, do jeito certo. Neste ambiente, o presidente parece navegar em águas absolutamente conhecidas.

Ele é o próprio festival, um anúncio. Simpático, profissional, carismático. No speach de abertura, explicou o funcionamento dos trabalhos, as facilidades e – é claro – os horários das refeições, já que ninguém é de ferro e, afinal, a gente estava na França. Teríamos comida como num transatlântico: o dia inteiro, com intervalos para repastos mais sérios. E o menu atenderia a qualquer gosto, hábito ou desvio de conduta. Teríamos à disposição preparações macrobióticas, vegetarianas, indianas, kosher, internacionais. Acho que havia até acarajé e pato ao tucupi. Cobras e lagartos.

Como detalhe, o chefão avisou que “evidentemente não servimos bebidas alcoólicas”, sem causar surpresa, pois até segunda ordem a gente estava lá para julgar, não para encher a cara. Pelo menos no horário de trabalho. Pois foi no primeiro intervalo, no bufê, que descobrimos que poderíamos nos servir à vontade de uma sensacional seleção de vinhos. Tintos, brancos e rosê. Ué, mudaram o regulamento? Na hora do almoço, garçons borboleteavam pelas mesas enchendo com generosidade todas as taças no mesmo tempo em que eram esvaziadas. O duro era encontrar Coca-Cola. Tinha também uns suquinhos e água Perrier para os radicais. Mas o forte mesmo era o vinho, consumido com toda alegria. Não foi preciso muito tempo para concluirmos: para os franceses, vinho não é bebida alcoólica. Foi nesse instante que eu tomei a decisão: iria parar de beber. E brindei a mim mesmo com uma dose de um espetacular borgonha. Estou assim desde aquele dia. Questão de força de vontade.

Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor