Um balanço pós-Festival de Cannes resgata ao top of mind uma verdade eterna, aplicada em qualquer campo da comunicação humana, da literatura ao cinema, passando pelas artes plásticas, o teatro, o vaudeville, a TV, a música erudita e popular, o circo, todas elas.

Um fato especialmente evidente no caso da publicidade, na qual a vanguarda sempre é derivada de outras inovações, e onde o que mais se vê é a rotina tediosa do desfilar de fórmulas vencedoras, algumas desgastadas depois de muito tempo de uso, como o comercial de TV, outras precocemente atacadas pela “fadiga de material”, como os banners digitais.

Mesmo comprometidas pelo excesso de uso, na maioria das vezes, a publicidade termina lançando mão dessas fórmulas que dão alguma certeza de que trarão resultado, ainda que pequeno. Profissionais com um nível mínimo de formação e experiência sabem que a repetição quase que infinita dessas fórmulas é certeza de resultados decrescentes. Mas as vicissitudes do dia a dia empurram a maioria de nosso trabalho diário para esse pântano da inércia da repetição.

A outra opção, a do experimentalismo, pode resvalar para o hermético confuso, gerando mais polêmica, aplausos e vaias do que resultados comerciais. E a publicidade, como uma ferramenta de marketing, existe essencialmente para produzir resultados, trazer algum tipo de ROI, seja em destaque, em fama, em sedimentação de percepção preexistente, em renovação de imagem, em estímulo à ação imediata – este último um objetivo excessivamente presente, o que acaba sendo antiprodutivo (mas este é tema para outro artigo).

Analisando os principais resultados do Cannes Lions, como se pode fazer, aliás, com qualquer premiação do setor com um nível aceitável de seriedade, pode-se concluir que, apesar do natural estímulo dos jurados em destacar as inovações, a coragem da ousadia e outras formas bem-sucedidas de experimentação, por um lado, e de minimizar as soluções tradicionais, ainda que bem estruturadas e impactantes, o que mais causa admiração é mesmo as fórmulas tradicionais feitas com doses superiores de talento.

Antes de voltar à publicidade, podemos fazer um paralelo com as artes mais requintadas, como a literatura, o teatro,
a pintura, o cinema e a música. Miguel de Cervantes fez uma paródia dos romances de cavalaria, que resultou no clássico Dom Quixote; William Shakespeare misturou tragédias gregas, a tradição oral e a commedia dell-arte em obras-primas como Hamlet, Romeu e Julieta, Macbeth; Da Vinci transformou um retrato encomendado na Mona Lisa (ou A Gioconda, como queiram); Francis Ford Coppola, com o suporte de talentos como Mario Puzzo e Marlon Brando, fez do gênero “filmes sobre a máfia” o monumental The Godfather; Tom Jobim usou melodias e versos dos mais simples para compor a imortal Águas de Março.

Na publicidade, podemos lembrar de peças inesquecíveis como os anúncios da DDB para promover o Fusca nos Estados Unidos; o jingle de Chiquita Banana; o comercial que lançou o Macintosh, da Apple. A campanha The Truth is Worth It, da Droga 5 para o New York Times, que conquistou o GP de Film e de Film Crat este ano em Cannes, é um exemplo perfeito dessa verdade: a fórmula é clássica, sem nenhuma invencionice, mas o talento aplicado em sua concepção estratégica, tanto como mensagem institucional de marca como de venda de assinaturas físicas ou digitais, a seleção das histórias que foram contadas e a “carpintaria” de sua execução cinematográfica transformaram esse trabalho numa inspiração para todos que têm o desafio diário de fazer com que soluções convencionais surpreendam como se fossem absolutamente inovadoras.

Rafael Sampaio é consultor em propaganda (rafaelsampaio103@gmail.com)