A discussão em torno dos gêneros, que ganhou força mundialmente, acabou viabilizando uma vitória, na semana passada, junto à Food and Drug Administration americana: a do laboratório Sprout Pharmaceuticals e sua droga Addyi, que trata a pouca ou a ausência completa de libido em ambos os sexos. Mas como o homem já dispõe de drogas específicas para tratar deficiências do hormônio masculino e afins como o Viagra, o Addyi foi imediatamente rotulado como uma espécie de “Viagra” feminino ou o “Viagra” rosa, algo que há tempo era esperado pelas mulheres, cujo prazer pareceu ignorado como prioridade pela indústria farmacêutica. O argumento de que havia uma “dívida” para com o prazer sexual feminino foi fortemente explorado pelos lobistas que batalharam por sua aprovação.

A nova pílula já vem sendo considerada a maior revolução desde a invenção do anticoncepcional, segundo declarou à mídia internacional a diretora-executiva da Liga Nacional dos Consumidores nos EUA, Sally Greenberg. A flibanserina, principal componente do Addyi, no entanto, apresenta riscos na interação com álcool e pode causar toda sorte de efeitos colaterais, como pressão alta, sonolência, desmaios, tonturas, náuseas. Seu uso não será OTC e sim dependente de receitas médicas específicas. Algumas correntes argumentam que seu efeito não é garantido. O que parece estar sendo comemorado, muito mais do que a eficácia do medicamento, é sua aprovação em si e o que ela representa para a sociedade mundial. Uma vitória feminista?

João Consorte, da McCann Health (foto abaixo), chama a atenção para o fato de que há mais diferenças que semelhanças entre os dois “Viagras”. “O masculino possui um mecanismo de ação periférica, estimula maior circulação sanguínea e ajuda na ereção. O feminino atua no sistema nervoso central. De acordo com a FDA, a substância possui um agonista e um antagonista de serotonina, que é um neurotransmissor associado ao prazer e ao bem-estar. Outra diferença importante é que o Viagra masculino tem efeito horas após o consumo, já o feminino deve ser tomado continuamente uma vez ao dia e o efeito pode levar algumas semanas”, diz.

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Outra diferença: o Viagra masculino pode ser comprado livremente em farmácias, enquanto o feminino não. Segundo Consorte, será necessário um trabalho mais profundo para se prever o comportamento deste novo mercado, pois, de um lado parece crível que no início não haverá impacto em vendas como o masculino, mas por outro lado há a discussão que se dará em um cenário diferente daquele que existia na época do lançamento do Viagra masculino, leia-se as redes sociais. “É arriscado fazer qualquer previsão de números neste momento”, comenta.

O professor Mario René Schweriner, coordenador do curso de graduação de Ciências Sociais e do Consumo da ESPM, arrisca um valor: se as vendas do seu “primo azul”, o Viagra, foram da ordem de US$ 1,7 bilhão de dólares em 2014, estima-se algo em torno de US$ 100 milhões ao ano para a “pílula milagrosa”. “Nem acabou de ser lançado e seu fabricante, o laboratório americano Sprout Pharmaceuticals, acaba de ser adquirido pela canadense Valeant Pharmaceuticals.” Ele argumenta que o Addyi não veio para salvar mulheres que não conseguem ter orgasmos ou são frígidas, apenas aquelas que de alguma forma tinham libido mas a perderam. A falta crônica de libido vem sendo tratada com doses de testosterona em injeções, comprimidos, gel ou adesivos.

A professora Maria Cláudia Tardin, professora de psicologia e comunicação da ESPM-Rio, diz que a pílula rosa possibilita às mulheres uma segunda revolução sexual e um aumento de empoderamento social, além de pôr abaixo algumas crenças sociais ainda existentes que recriminam mulheres na menopausa que gostam de fazer sexo.

“A primeira revolução sexual foi com o advento da pílula, em que elas assumiram seu desejo de transar e ter parceiros. Agora, quando entram na idade de 40 e poucos e os 50, em que param de menstruar e perdem a possibilidade de engravidar, podem manter-se com interesse sexual e assumir seus desejos socialmente. Esse medicamento aumenta a autonomia social das mulheres e representa também, a legitimação social de que as mulheres podem escolher como viver eroticamente. Sua vida intima ganha novas possibilidades e caminhos. Diminui-se mais alguns limites: biológicos e sociais, principalmente. Esses últimos são os mais difíceis de serem aceitos.”, opina.
Rodrigo Leão, sócio e diretor de criação da Casa Darwin, concorda e diz que o “empoderamento” está no centro da questão: a retomada do controle da mulher sobre seu corpo, sua vida e seus sonhos.

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“A chegada do viagra feminino é mais um sinal de que o mercado vê como certa a consolidação da igualdade de gêneros. E isso é um ótimo sinal. Seja no escandaloso filme do Rankin para Coco de Mer ou nos biquinis ultraluxe da brasileira Adriana Degreas, o corpo feminino está passando por uma importante transformação na cultura. Deixa de ser objeto de desejo para ser uma ferramenta de poder. Vemos isso na fotografia de moda onde Mert & Marcus recriam as mulheres poderosas de Helmut Newton e nos clipes da Rihanna, cada vez mais agressivos”, comenta.

O designer Fred Gelli questiona: “O grande desafio será sempre o equilíbrio entre o que a tecnologia oferece como atalho e os caminhos de maior aprofundamento na procura da felicidade, como terapias, conversas francas e experiências, que normalmente são mais longos e tortuosos.”

A questão dos gêneros e a promessa de felicidade

A roteirista Martha Mendonça, autora do livro “As Canalhas” e redatora do site “Sensacionalista”, não gosta do conceito de “viagra feminino” e chegou a criar uma notícia no Sensacionalista brincando com a novidade virá nas opções “você emagreceu” e “você parece mais jovem”.

“No caso do homem, o viagra de fato resolve uma questão física. Mas o desejo feminino é mais complexo, mais psicológico. A mulher precisa se sentir feliz consigo mesma, desejável, feliz e relaxada para ter vontade de transar. Mexer com a serotonina é um primeiro passo, mas ela depende, principalmente, de bons parceiros”, argumenta.

A escritora Maria Clara Mattos (foto abaixo) diz que é preocupante a excessiva “promessa de felicidade” de drogas e outros artifícios.

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“A ruga pode ser corrigida, a tristeza pode ser corrigida, a euforia pode ser corrigida. Isso insufla o desejo por alguma coisa que não é, que não está, que a gente não aceita mais  estar ou ser, e que dizem que é importante. Às vezes não estamos com fome, com ede, com desejo sexual. O não desejo também faz parte da vida”, argumenta.

O publicitário PJ Pereira, da Pereira & Odell de São Francisco, comenta que se por um lado o que pode ser visto como um passo pela igualdade entre os gêneros pode se tornar mais uma grande pressão nos ombros das mulhres, que já “têm que ser” magras, mães impecáveis, executivas competitivas.

“E agora têm que ser um poço de libido também. Se as consequencias são positivas ou negativas, vai depender tanto do que a sociedade vai fazer com essa novidade no que se refere a tornar a libido constante uma obrigação, ou se isso será discutido como uma possibilidade a mais. A pink pill, por exigir doses diárias, pode implicar na ideia de que a mulher não tem escolha sobre esse momento certo, e viverá com mais uma exigência nas suas costas. Será de uma ironia muito triste e cruel se uma ideia com potencial tão liberador se tornar mais uma tonelada no fardo que a mulher já carrega na nossa sociedade”, conclui.

O jornalista Gilberto Scofield, ativo na discussão da liberdade dos gêneros, diz que vivemos uma espécie de revolução por igualdade em espaços em torno de identidade e gênero sexual, raça, minorias, classe social, poder político, o que se materializa em eventos que vão desde acaloradas discussões em redes sociais a manifestações de rua de “gente cansada de uma polícia que atira primeiro e pergunta depois”.  Mas ao mesmo tempo vivemos tempos sombrios, em que as vozes se ampliaram mas uma onda conservadora e reacionária se espalha.  

Sobre o viagra feminino, ele acredita que o medicameto tem um poder ainda mais revolucionário porque revelador: ajudar as mulhreres a conhecer o desconhecido.

“Tirar as pessoas da zona de conforto sempre é positivo. Me pergunto, no entanto, se um medicamento como o Viagra não pode ampliar um individualismo já massacrante. É a tal coisa: “eu não preciso de você nem mais para me fazer gozar”. No balanço da coisa, acho o Viagra feminino mais positivo que negativo. Mais empoderador que aprisionador. Aguardem a reação masculina.”, opina.
O psicanalista Francisco Alcover, aposta na boa aceitação da novidade.

“Tudo o que suscitar controle, objetividade, iniciativa em nossa cultura absolutamente masculinizada terá seu lugar garantido. Entretanto, há também que se entender que todo caminho objetivo para o prazer, independentemente do gênero, seguramente será um caminho para o solitário, pois ter a ideia do prazer é realente diferente de se ter prazer. Prazer é sentir, liberar, receber, que vem do relaxamento, da entrega, ou seja, dos aspectos que caracterizam o feminino, esse cada vez mais distante da nossa realidade contemporânea”, argumenta.

Segundo ele, as mulheres nunca estiveram tão impecavelmente “bombadas”, articuladas, independentes, mas ao mesmo tempo, e muitas vezes, se sentindo sozinhas.

“Vamos torcer para que a pílula do prazer feminino, junto a todas as promessas, também traga oportunidade de reflexão sobre o feminino que agoniza”, diz.

Procurado, o laboratório Sprout Pharmaceuticals diz através de sua assessoria que a empresa está “comprometida com a missão de levar um tratamento eficaz e sseguro a milhões de mulheres que sofrem com baixa libido”, e que ainda não há previsão de lançamento da pílula no Brasil.