Estou lendo Navegação de cabotagem, do Jorge Amado. É uma coleção de apontamentos sobre passagens de sua vida riquíssima em experiências “para um livro de memórias que jamais escreverei”. A certa altura, garimpei essa preciosidade: “aprendemos na carne a diferença entre a grandeza dos ideais e a miséria da ideologia”.

Jorge Amado, além de expoente da literatura brasileira, foi um aguerrido militante comunista, respeitado em todos os PCs do mundo. Poucos integrantes do partidão terão vivenciado os bastidores da ideologia com tamanha intimidade. Certamente por isso teve autoridade suficiente para, então, decepcionado, constatar a “miséria da ideologia” frente à “grandeza dos ideais”. Refletindo sobre o assunto, sou levado a perceber ideologia como uma espécie de embalagem de ideais para fins de “comercialização”. São os ideais à luz do marketing.

Ideais, na origem, carregam a pureza contida em ideias, que traduzem sonhos eivados de boas intenções. É o conceito de ideologia que se apropria deles e os transforma em produto a ser vendido como solução para questões crônicas da humanidade.

Ao longo da História, líderes populares potenciais contrataram propagandistas (hoje, marqueteiros) para convencer as massas de que a adoção de tal ideologia levaria à redenção da sociedade. Jorge Amado mata a charada, ao lembrar que ideologia é uma deturpação do ideal, a partir do momento em que está a serviço de alguém ou de um grupo em busca de poder. Lideranças comunistas, nazistas e fascistas foram pródigas no uso de técnicas de marketing e de propaganda, a ponto de diluir a essência de um ideal no caldo de uma comunicação sustentada em slogans que se encerravam em si mesmos. Ou seja, as pessoas os repetiam, simplesmente. Esse nivelamento mental, esse ordenamento do pensamento, focado na sustentação de um poder, “legitimado” pelo clamor do povo, acabaria esbarrando, depois de inúmeros genocídios, na negação a uma sociedade incondicionalmente igualitária.

A genial filósofa alemã Hannah Arendt foi suscintamente precisa, quando escreveu que “a única coisa que temos todos em comum é sermos todos diferentes uns dos outros”. E, assim, justificou com brilhantismo a derrocada de toda a tentativa de imposição e permanência de ideologias que se pretenderam ditadoras do comportamento humano. Ou seja, trabalhando para ideais, o marketing funciona como novidade, mas não resiste à racionalidade. Porque tende a subvalorizá-los, converter seus propósitos nobres em mercadoria ordinária.

Voltando à questão levantada por Jorge Amado, é de se questionar como seria, então, a vigência da “grandeza dos ideais”, livre da “miséria das ideologias”. Uma utopia? Talvez. Hoje em dia, grandes questões relativas à sustentação da vida na Terra, por exemplo, são trazidas para o engajamento das sociedades, como ideal.

Mas exigem investimentos bilionários, o que torna a causa dependente de patrocínios. Ou seja, de marketing. Então, o ideal vira refém do mercado e só funciona como oportunidade de negócio. Como na política, onde só funciona como oportunidade de poder.

Stalimir Vieira é sócio da Base de Marketing
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