Um lugar me inspira: lá o céu é maior, mais azul e nele cabem todas as cores das pipas que dançam no alto.

Onde eu aprendi a engatinhar, andar, correr.

Ali, onde eu vi um cômodo virar vários, um portão de madeira dar lugar a um de chapa, uma geladeira quase vazia se encher de comida.

Naquele bairro da periferia de Osasco, onde eu subia e descia ladeira, nem sempre calma e quase nunca devagar.

Andando pela antiga, mas sempre Rua 1, onde eu vi chegar o ponto de ônibus e peguei, pela primeira vez, o 008: número que tenho tatuado no pescoço para nunca me esquecer de onde eu venho.

Ali, onde me apaixonei pela primeira vez, fui preterida pela primeira vez, chorei por amor pela primeira vez.

Onde também me entendi como mulher negra pela primeira vez.

Senti o ar ir embora num enquadro. Faltou fôlego num roubo à mão armada.

Perdi um pai que ainda está vivo.

Tudo pela primeira vez, naquele lugar.

Ainda com todas as dores, ali eu sou eu. Sem a robustez que o mercado de trabalho exigiu de mim para chegar onde cheguei. Sem rodear para falar com carinho e fugir dos estereótipos de barraqueira.

Sem engolir o choro e sem precisar ser forte o tempo inteiro. Mas, ainda assim, cheia de revolta e, ao mesmo tempo, de esperança tal qual sou hoje.

Sim, o lugar onde eu nasci e hoje não vivo mais me inspira até agora.

As poesias que declamei lá me deixam mais perto da minha coragem.

O batidão, cujo ritmo aprendi lá, me ensina a continuar dançando conforme a música.

O órgão eletrônico que toquei lá me relembra que timbres diferentes podem compor uma harmonia singular.

As pessoas que vivem lá me fazem lembrar o motivo pelo qual não devo desistir.

Ali, senti muita raiva ao ver tantos talentos sem espaço para brilhar e tantas carreiras interrompidas pela falta de oportuni- dade.

Por outro lado, também senti muito acolhimento ao receber o carinho de quem me viu crescer ou ganhar um presente da dona da vendinha logo que fui morar sozinha.

Quando sinto tudo isso, lembro do motivo de estar aqui.

Somos descendentes dos trabalhadores e trabalhadoras que, muitas vezes, não puderam realizar os seus sonhos para atender às nossas necessidades.

E hoje, ainda poucos, mas alguns de nós pudemos abraçar as oportunidades que recebemos e mudar as nossas vidas.

Ainda assim, é ali que eu me encontro de novo comigo e com a minha história.
Eu adoraria dizer que o que me inspira são livros, filmes ou personalidades.

Mas o que realmente me devolve ao mesmo passo que me tira o ar, é saber que eu vim dali.

Uma relação complexa, cheia de altos e baixos, dores e alegrias, avanços e retrocessos. Engraçado o que me inspira: o Jardim Primeiro de Maio. O meu lugar.

Amanda Sthephanie é especialista em diversidade da Fbiz