Legado! O poeta cubano José Martí cunhou uma frase que foi popularmente editada e é muito usada: “Plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro: três coisas que toda pessoa deve fazer durante a vida”. Com a escrita em coautoria do livro lançado em maio deste ano, Empreendedorismo da mulher negra, a potência, finalizei com as três tarefas e entrei em reflexão sobre as metas de vida que nós plantamos para nós.

A viver alocando as pessoas em categorias ou “caixinhas” e isso garante uma certa estabilidade social sobre o que esperar dos comportamentos dos grupos diversos que a definem. Há prerrogativas que estão vinculadas a cada fase de sua vida: se você é criança, tem liberdade para ser sorriso espontâneo, pode até uma meia de cor que ninguém vai te olhar com criticidade, até desperte sorrisos; quando jovem, são algumas pessoas certas, atitudes de recusa aos padrões e uma esperança de que seja logo uma pessoa adulta; quando adulto, é esperado que seja um membro da sociedade que agrega valor e “tem sucesso”; quando uma pessoa madura, que a sua experiência e oferta de “feliz idade”: basta ver a quantidade de casas de estação, que sempre vem crescendo. As pessoas que ficam entre essas prerrogativas, normalmente, são palavras em conformidade, irreconformadas, muitas vezes, que começam com "i negam sua".

Quando uma pessoa se prepara para escrever um livro, inteiro ou em parte, apenas um capítulo, ela precisa se preparar para uma exposição, e o mais difícil é escolher a linha editorial, ou seja, como será feita a escrita. É importante saber com quem se vai falar, o que se vai falar e como se vai falar. Há um tempo de maturação entre ideia e escrita final, e o peso do legado que a escrita nos traz gera um certo desconforto para começar e um senso de realização ao terminar. Nem sempre nossa jornada escrita atenderá as expectativas da sociedade sobre a identidade da mulher negra brasileira.

Escrever, para mim, foi um ato de resistência
“Ao escrever este texto, deixo alguns de meus pensamentos enquanto mulher negra, mãe e periférica. Há neste registro um ato: aqui resisto ao nosso apagamento e invisibilização. Espero que estas linhas apoiem outras mulheres, principalmente as negras, a encontrarem seus caminhos com menos dor e mais axé.

Escrever exige mergulhar em si mesma, desperta a consciência sobre o que vivenciamos; sobre como aprendemos e ensinamos, sobre o impacto do eu, do outro e de nós mesmos, durante a jornada. É através das relações que construímos nossas crenças e valores, definimos nosso modo de interagir com o mundo. Os aspectos escolar e social são influenciadores que podem ou não reforçar nossas escolhas.” (LOPES, 2021).

Entre 14 coautoras negras, escrever sobre Equidade Racial – a importância do tema para o empreendedorismo exigiu inclusive uma pesquisa com outras mulheres negras que empreendem, porque eu não poderia falar apenas do meu olhar, e um dado que se destacou foi a forma como as mulheres negras aprendem e ensinam no âmbito do empreender: quase 90% das entrevistadas acreditam que ensinam enquanto empreendem e aprendem com outras pessoas, desde familiares a mulheres e homens cujas habilidades e realizações elas admiram.

Não há um caminho único no empreendedorismo negro. Em nossa maioria, fazemos aquilo que está mais fácil. Começamos com o que aprendemos em casa ou com o que nos foi ensinado entre as primeiras atividades escolares e nos deu prazer: arte, dança, artesanato, moda e alimentação, entre outras, e, conforme as pessoas compram e nos fazem nos sentir pessoas reconhecidas, vamos ampliando nossa percepção sobre o valor que agregamos e sobre nossa capacidade de sermos especialistas e de vivermos a partir da renda gerada com aquela atividade.

No geral, o cotidiano das pessoas negras e periféricas e dos grupos invisibilizados é repleto da urgência de quem precisa vender seus produtos e serviços para pagar as contas do mês, comprar material e investir em si e no negócio, porque não há capital semente, nem familiares, amigos ou bens que possam usar para garantir uma sobrevivência digna até que o negócio decole. E, detalhe: em sua maioria, essas pessoas querem crescer no território, e não sair para o mundo; elas normalmente querem ver sua “gente” vivendo bem.

No entanto, no mercado onde ocorrem os investimentos e as compras com maior margem de lucro, os espaços são, predominantemente, para não negros e exigem formação superior, mais de um idioma, plano de negócios, clareza na missão, visão e valores, entre tantos outros conhecimentos e o famigerado “pitch” que nem nos vemos nesses lugares, nem nos sentimos pessoas prontas a atender o nível de exigência para estar ali. Há muitas pessoas de mercado que atuam para gerar um networking de valor e, a partir dessa construção, esperam um tempo para maturar os negócios, a chamada “cauda longa”1, e estão dispostas a vender no médio e longo prazo e a receber investimentos com parcerias que as levem pelo mundo; as pessoas pretas geralmente não têm esse tempo.

Tive meu primeiro filho com 26 anos. Já havia viajado e trabalhado em vários segmentos, e estava numa agência de publicidade. Escolhi não trabalhar em funções na época devido ao frenético dessas áreas; com filho pequeno e estudando, isso era quase inimaginável. Assim, fui trabalhar em uma empresa privada que me exigia tanto quanto uma agência e fui a única negra durante o tempo em que estive por lá. Plantar a árvore, fiz na mesma época e, agora que estou com quase 50 anos, e um pouco sobre mim e muitas outras mulheres negras da periferia que empreendem para ter um direito que nos é negado desde muito cedo: escolha que legado queremos deixar!

Samanta Lopes é coordenadora MDI da agência de live marketing um.a #DiversidadeCriativa