Estudo de universidade norte-americana aponta indícios de boicote ligados à violação de direitos humanos e leis contra cidadãos LGBTQIA+

O país que recebe uma Copa do Mundo leva mais que bola ao gol em solo nacional. O evento funciona como uma vitrine de hábitos e locais transformados em destinos turísticos para visitantes de todo o mundo, deixando um saldo cultural e econômico como herança. Mas no Catar, essa não tem sido a lógica do jogo. Para além das questões econômicas, pois certamente lucros virão, não é raro encontrar retaliações a comportamentos que vão de encontro aos esforços das próprias  marcas em prol de um mundo mais inclusivo.

“A exposição e o alcance das marcas patrocinadoras da Copa é enorme. Só que, nos últimos anos, o consumidor ficou muito mais crítico, e não aceita incongruências”, adverte Juliana Morganti, diretora de estratégia da Mutato. Indícios de boicote foram sinalizados por estudo  da Montclair State University (MSU), de Nova Jersey (EUA). Analisada entre outubro e novembro, uma amostra de 22 mil tweets com a hashtag boycottqatar2022, mais de 18 milhões de impressões e cerca de 43 milhões de pessoas atingidas indicou 92% de apoio a protestos ligados a direitos humanos e leis contra cidadãos LGBTQIA+.

A homossexualidade é ilegal e passível de prisão no Catar. Algumas seleções europeias, como Alemanha e Inglaterra, anunciaram que seus capitães entrariam em campo com a frase One love escrita na braçadeira, mas desistiram depois que a Federação Internacional de Futebol (Fifa) ameaçou punir com cartões amarelos os jogadores que insistirem em manter a manifestação. Em represália, os atletas da seleção tetracampeã da Alemanha tiraram a foto oficial antes da partida contra o Japão, no estádio Internacional Khalifa, na quarta-feira (23), com a mão na boca.

Amir Somoggi, da Sports Value: soft power é terrível (Divulgação)

“Se por um lado, a primeira Copa do Mundo no Oriente Médio vai marcar pela beleza e pelo luxo, as questões trabalhistas e de mortes de empregados na construção dos estádios e a discussão em torno dos direitos humanos, em especial, ao movimento LGBTQIA+, também lembrarão a Copa”, frisa Fernando Trein, professor de marketing esportivo da ESPM Porto Alegre. O sócio-diretor da Sports Value, Amir Somoggi, alerta que “o soft power é terrível porque consegue suavizar até o pior dos ditadores”.

O consumo de cerveja também foi colocado em xeque. Às vésperas da abertura do Mundial, a Fifa e o Catar proibiram a venda de bebidas alcoólicas no entorno dos estádios, decisão que incide no patrocínio da Budweiser, da AB InBev, cerveja oficial do torneio.

“Após discussões entre as autoridades do país anfitrião e a Fifa, foi tomada a decisão de concentrar a venda de bebidas alcoólicas no Fifa Fan Festival, removendo os pontos de venda de cerveja dos perímetros do estádio da Copa do Mundo da Fifa 2022 no Catar”, escreveu a Fifa em nota. A Budweiser resolveu presentear o time campeão com o estoque de cerveja anteriormente destinado ao evento.

“Acho um absurdo países como Rússia e Catar, e outros que não são efetivamente uma democracia, que não têm alternância de poder, que controlam a mídia, limitam mulheres e homossexuais, serem considerados para grandes eventos”, critica Somoggi. Na bola dividida, nem sempre o marketing ganha. “Embora estratégico, o marketing não é o único pilar. Essa situação traz um plano mais realista, do poder do dinheiro, e do poder político. E coloca o marketing no seu devido tamanho. Chega um momento em que existe um jogo de forças e, normalmente, o dono do cofre ganha”, observa Roberto Kanter, especialista em marketing dos MBAs da FGV. O imbróglio é tratado no documentário Esquemas da Fifa, lançado pela Netflix.

Para Kanter, a Budweiser perde no consumo local, mas a relevância permanece em mercados globais, que já são expressivos para o consumo da marca. “Não se trata nem de um risco calculado. É um prejuízo que está dentro da conta. Custaria muito mais não estar na Copa, e ceder espaço para o concorrente”, acredita o professor. A tendência é de que a retomada tome o seu curso, resgatando pautas da agenda progressista.

Juliana Morganti, da Mutato: incongruências (Daniela Toviansky/ Divulgação)

“No digital, todo mundo pode se predispor a boicotar, não cabe julgar os motivos e responsabilidades, mas sim analisar o impacto, o quanto, na prática, isso tem um espelhamento”, reflete Kanter. De qualquer forma, o especialista defende mais transparência. “As marcas poderiam explicar as suas posições, políticas e econômicas, frisando que credos, crenças e cores não importam no futebol”, sugere Kanter.

Foi o que fez a Hyundai, outra patrocinadora da Copa. A montadora coreana exibiu nos intervalos dos jogos um filme que mostra a mãe ao volante de um Creta Nova Geração 2022, e a filha, no banco de trás. “Eu já posso aprender a dirigir?”, pergunta a menina. “Mensagens de incentivo à diversidade e à inclusão são presença constante nas comunicações da Hyundai. Exemplos anteriores ao do Creta Nova Geração reforçam o compromisso da marca também com o empoderamento feminino, como nos comerciais do HB20 em 2019”, lembra Jan Telecki, diretor de marketing e comunicação da Hyundai para as Américas Central e do Sul.

A Hyundai usa a sua presença na Copa do Mundo no Catar para expressar os valores da empresa. Um dos exemplos é a campanha Goal of century, que traz mensagens de solidariedade e sustentabilidade ao lado de nomes do esporte e cultura. Além da comunicação visual, a marca disponibilizou veículos sustentáveis e inaugurou o Museu Fifa.

Localmente, implementou a promoção Na Hyundai dá jogo, test drive com emissão de carbono zerada por meio do plantio de mais de mil árvores da Mata Atlântica. “É possível usar o espaço de patrocinador para se posicionar, conforme os valores da marca. A neutralidade não leva a nenhum lugar”, sublinha Juliana, da Mutato, que transformou o influenciador Luva de Pedreiro na voz do aplicativo Waze a fim de inserir a marca na conversa do futebol.

(Crédito: Hatem Boukhit on Unsplash)