O impacto gera um misto de comoção e revolta na opinião pública

A crise enfrentada pela agência de viagens online 123 Milhas reflete a aposta em um cenário que ficou longe da realidade projetada após a pandemia da Covid-19. O setor de turismo, um dos mais afetados durante a quarentena, conseguiu se reerguer, “porém não o suficiente para dar o retorno esperado para essas plataformas de viagens”, analisa Fernando Domingues, coordenador do Startup Lab da ESPM.

No último dia 18, a empresa mineira “decidiu suspender as emissões de passagens e pacotes da linha Promo (com datas flexíveis) com previsão de embarque de setembro a dezembro de 2023. As vendas desse produto já haviam sido interrompidas no último dia 16. Todos os demais produtos da 123 Milhas permanecem sem nenhuma alteração”, anunciou a plataforma em comunicado exibido em seu site.

A reação do setor não tardou. No dia 19, o Ministério do Turismo já havia acionado o Ministério da Justiça e Segurança Pública para investigar os motivos do cancelamento e medidas de reparação de danos, em procedimento realizado por meio da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). Em nota, ambos os ministérios dizem buscar mecanismos para impedir “que situações semelhantes voltem a se repetir e responsabilizar empresas que, porventura, tenham agido de má-fé”, comentam os órgãos.

Cena de vídeo que alerta sobre golpes e compra segura exibido no canal oficial da 123 Milhas no YouTube (Reprodução)

No último dia 21, o Procon-SP encaminhou uma notificação para a 123 Viagens e Turismo, cobrando esclarecimentos sobre as condições manifestadas para a interrupção do serviço e as providências para atender as pessoas atingidas. “Já temos muitos relatos de consumidores que não estariam sendo atendidos, o que é um problema adicional, especialmente para quem se programou para viajar logo no começo de setembro”, aponta Rodrigo Tritapepe, diretor de atendimento e orientação do Procon-SP.

Segundo o órgão, a mudança das regras foi unilateral. “Não se pode deixar os consumidores sem informação”, pontua Tritapepe. Também o Instituto Brasileiro de Cidadania (Ibraci) submeteu à Justiça uma ação civil pública solicitando o bloqueio das contas bancárias da companhia, de seus sócios e acionistas.

O negócio
A 123 Milhas atua por meio de dois tipos de negócios. Um deles é a venda de passagens e pacotes com datas estabelecidas, operando como uma agência de viagens, formato que não foi afetado. A outra frente é encabeçada pela oferta de pacotes promocionais sem data certa para a viagem, justamente o modelo que foi paralisado. Os bilhetes eram prometidos para períodos além do prazo de 11 a 12 meses trabalhado pelas próprias companhias aéreas.

Ronald Nicolau: preço alto para restabelecer operação (Divulgação)

A oferta de preços abaixo do mercado, sem garantia de reserva e data definida, é um dos fatores que explicam o momento adverso, agravado pela forte demanda, que aumentou o preço dos combustíveis e das passagens. “Havia uma grande expectativa de que o setor de turismo realizaria ações para estimular o consumo, sobretudo das companhias aéreas em baixar os preços das passagens, o que não aconteceu”, recorda Domingues, da ESPM.

A 123 Milhas usa a conjuntura econômica como justificativa para as dificuldades. “A decisão deve-se à persistência de fatores econômicos e de mercado adversos, entre eles, a alta pressão da demanda por voos, que mantém elevadas as tarifas mesmo em baixa temporada, e a taxa de juros elevada”, alega a empresa. Os valores pagos pelos clientes que adquiriram produtos da linha Promo com embarque previsto para setembro, outubro, novembro e dezembro de 2023 serão integralmente devolvidos em vouchers, com correção monetária de 150% do CDI, acima da inflação e dos juros de mercado.

Outro pilar da crise pode estar ancorado na mudança da legislação, que restringiu a oferta de milhas, modelo também comercializado pela plataforma. Em janeiro, a 123 Milhas se fundiu com a Max Milhas na esperança de expandir a venda online de passagens aéreas e serviços turísticos por meio da compra de milhas. O acordo originou uma OTA (Online Travel Agency) estimada à época em R$ 6 bilhões em vendas. Ambas operam de forma independente.

Consumidores frustrados, desconfiança e revolta dificultam a recuperação da imagem de marcas que falham ao cumprir promessas (Pressfoto/ Freepik)

A marca
A 123 Milhas manteve forte presença na TV por assinatura nos últimos anos. Reconhecida por uma tag sonora cantada com o nome da própria empresa, a marca sempre ressaltou em sua comunicação três passos para sugerir que “Viajar é pra todos”. “Pesquise, compre, viaje” e “Simples, rápido, confiável” são algumas das mensagens já exploradas pela empresa nascida em Belo Horizonte (MG), em 2016, que soma o embarque de mais de 15 milhões de clientes para destinos nacionais e internacionais.

“Um modelo operacional diferente gerou curiosidade nas pessoas, principalmente pelo esforço para transmitir confiança: fotos de celebridades estampadas em aeroportos, o segundo maior investimento em mídia do ano de 2022, pessoas no entorno que arriscaram e viajaram a preços incríveis”, ressalta Isabella Mota, brand economics lead da Interbrand. Atributo-chave para fortalecer uma marca, a confiança, porém, não trabalha sozinha. “Precisa de discurso, mas também de prática”, situa Isabella.

A rota é incerta. “O impacto na imagem da 123 é intenso, gera um misto de comoção e revolta na opinião pública, e abala a confiança nas outras plataformas que operam sob este mesmo modelo de negócio”, adverte Ronald Nicolau, CEO da Target Estratégia em Comunicação. Eficácia e rapidez determinarão a capacidade de a marca sair desse cenário turbulento, com desdobramentos jurídicos, pressão financeira, bloqueio de crédito e ruptura nas vendas. “A plataforma vai pagar um preço alto para tentar restabelecer a operação”, acredita Nicolau.

Leia a íntegra da reportagem na edição impressa de 28 de agosto.