Inspiração. Essa mulher com tentáculos de polvo que volta e meia foge pra onde é mais fundo o oceano das palavras. Sim, o meu oceano é escrito, já que vivo dessa coisa quase injusta que é transformar pensamento em texto. Mais injusta ainda quando é ficção. Porque o próprio pensar já é bastante ficcional, não é?

Quando terminei de escrever meu primeiro romance, O Céu Pode Esperar Mais Um Pouquinho, pedi que algumas pessoas lessem. Da família, claro. Melhor ser mal falada em casa. E não me esqueço da expressão de abismo no rosto da minha irmã, mais velha e madrinha: “de onde você tirou isso?!” Respondi que não sabia, simplesmente me veio a imagem de um homem numa determinada situação e, de repente, esse cara começou a falar dentro da minha cabeça… Li muitos romances policiais enquanto escrevia, já que eu estava mergulhando no mundo noir, e acabei ficando fã de um cara pouco conhecido no Brasil, o Mickey Spillane*.

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Daí vieram as músicas. Sim, o livro tem uma trilha sonora que corresponde aos estados de espírito do personagem. Foi uma coisa que aconteceu, não foi programada. Mas o cara me soprava os títulos, eu anotava. Taí a playlist.**

Como dizer que pensar não é ficção?

No segundo romance, Depois da Chuva, aconteceu parecido, mas diferente. Também pensei numa imagem. Agora de um homem e uma mulher. Um encontro casual em Ipanema, em frente a uma loja de departamentos carioca, num dia de chuva. Sempre pensei na quantidade de pessoas por quem a gente passa na rua de quem talvez a gente nunca chegue a saber uma vírgula. Passei a imaginar o que poderia acontecer se um encontro assim tivesse um desdobramento. Marcasse as pessoas envolvidas de uma maneira irreversível.

Uma vez aconteceu comigo. Passeando com o cachorro, cruzei com um homem desconhecido – ele passeando com o filho – e, por uma fração de segundo, nossos olhares grudaram. Não foi necessariamente um acontecimento sensual, mas foi um acontecimento. Na hora, pensei: nunca mais vou ver esse cara na vida. Fato. Nunca mais nos vimos. Mas volta e meia imagino como será a vida dele, onde ele trabalha, quem é a mãe daquela criança, o que ele faz no fim de semana…

Gente é minha matéria-prima. Não só da escrita, mas da vida também. Gosto de gente. Acho gente uma coisa incrível. Então, meu segundo romance conta uma história assim. Que começa com um encontro em frente ao letreiro da Casa e Vídeo de Ipanema. Uma loucura a Casa e Vídeo ser inspiração de um romance! Mas, na verdade, ali já foi um cinema. E a ideia de um cinema sendo substituído por uma loja de departamentos faz muito sentido na história do livro.

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Às vezes uma frase dita por alguém no meio da rua é o que me faz pensar numa história inteira, num personagem, numa cena. No fundo, acho que ninguém sabe exatamente o que é essa tal de inspiração, mas tenho certeza de que ela é tão mulher quanto o gênero feminino do substantivo. Porque só uma mulher é capaz de aparecer e desaparecer de verdade. Mesmo que as moças costumem se queixar do sumiço dos rapazes de uma noite só.

E sei também que a inspiração tem tentáculos. Cheios de ventosas.

*http://www.imdb.com/name/nm0818765/bio
**https://open.spotify.com/user/mcmacaia/playlist/0fJZhyCTDTbFCOusCOMiku

Maria Clara Mattos é roteirista, escritora, tradutora e atriz