Uma das ações de marketing que mais repercutiram este ano foi o convite feito pelo Burger King ao rival McDonald’s para a criação de um lanche em conjunto que, caso a proposta fosse aceita, receberia o nome de McWhopper. A ideia foi lançada publicamente em anúncios de página inteira nos jornais The New York Times e Chicago Tribune, além de posts nas redes sociais e um hotsite criado pelas agências do Burger King.

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O final da história já é conhecido, mas apenas para lembrar, o McDonald’s recusou e outras marcas concorrentes aproveitaram o grande buzz da inicitativa e se ofereceram a participar. Nesta segunda-feira (21), data em que se celebra o Dia Internacional da Paz, os restaurantes Denny’s, Wayback Burgers, Krystal e o brasileiro Giraffas, junto com o Burger King, claro, cumprirão a promessa e distribuirão gratuitamente em Atlanta, nos Estados Unidos, 1.500 lanches rebatizados como Peace Day Burger. 

O que ficou em segundo plano nessa história toda é que a ação tem o objetivo de promover a ONG Peace One Day, organização que trabalha em prol da melhoria das relações entre as pessoas e a trégua de nações em conflito. Mais encoberto ainda ficou o debate sobre os problemas que afetam a paz mundial e as possíveis alternativas. Nas milhões de interações online geradas a partir da campanha, muito se comentou sobre o posicionamento de Burger King e McDonald’s e pouco ou nada se falou sobre causas e soluções, mesmo em dias nos quais a humanidade assiste a uma das maiores crises de deslocamento de refugiados de guerra que tentam fugir da Síria para a Europa.  

Para o professor de relações internacionais da FAAP e mestre em estudos regionais do Oriente Médio e América Latina, Jorge Mortean, isso é resultado da lógica de um sistema baseado no consumismo. “Na sociedade do consumo, faz sentido que se promova ações em que a imagem das marcas se sobrepõem ao tema que elas deveriam divulgar. É uma malevolência com o chapéu dos outros. O certo é fazer uma publicidade que enalteça a causa, e não o contrário”, diz. 

De acordo com Mortean,  é normal verificar companhias pegando carona em temas sociais sem o verdadeiro comprometimento. “É comum ver grandes empresas se associando a causas para criar produtos e serviços que trazem algum valor social, mas muitas vezes este tipo de parceria é pensada com segundas intenções. Bancos fazem bastante isso com o uso de cartões de crédito com propostas diferenciadas para atrair clientes, por exemplo. Quando a solidariedade é posta em segundo lugar, atrás dos planos de obter lucro, temos um problema”, acrescenta Mortean, que também é publicitário e desenvolvedor de negócios da Mercator Business Intelligentsia. 

Por outro lado, associações com grandes marcas e inclusive com celebridades são importantes para as ONGs alcançarem mais pessoas com suas mensagens.  Segundo o professor da ESPM, Ismael Rocha, o marketing de causa é uma tendência e representa grandes oportunidades para que as organizações insiram suas pautas na agenda da mídia. “Conceitualmente, é uma estratégia importante para ambos os lados, mas existe uma maneira correta de fazer o marketing de causa. O contrato precisa ter obrigações claras para que a parte mais frágil da negociação, que é a ONG, não saia prejudicada”, afirma. 

Entusiasta do marketing de causa como estratégia de engajamento para marcas e exposição para as ONGs, Rocha acredita que no caso específico da parceria do Burger King e demais marcas com a Peace One Day o que houve foi pressa e falta de planejamento na condução da campanha. “Talvez tenha havido uma ansiedade. Vislumbraram a oportunidade e fizeram as coisas às pressas. É difícil identificar porque às vezes esse tipo de ação não acontece como deveria. Pode ser por despreparo dos profissionais de marketing das empresas ou até mesmo por deslumbramento da ONG ao conseguir um grande parceiro”, analisa. 

O especialista da ESPM ainda comenta exemplos positivos em que a associação entre empresas e ONGs geram resultados satisfatórios para as causas. Um deles são as campanhas da Avon a favor da prevenção contra o câncer de mama, nas quais a marca promove o assunto sem se sobrepor ao tema e realizando ações que inclusive vão além das peças de mídia, como o trabalho de vendedoras que levam informação sobre o tema durante visitas comerciais a consumidoras ao redor de todo o país.

O segundo case de destaque citado pelo professor é a parceria duradoura entre Havaianas e o Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ). Constantemente, a marca lança sandálias com estampas de animais em extinção e dissemina informações sobre a causa, além de reverter 7% do valor das vendas para o instituto. Desde 2004, a coleção Havaianas – IPÊ vendeu mais de dez milhões de pares e direcionou mais de R$ 5 milhões à organização. 

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O terceiro grande case de sucesso lembrado por Rocha é justamente o McDia Feliz, do McDonald’s, que saiu como vilão na história deste Dia Internacional da Paz por ter recusado o convite do concorrente.  A rede de fast food mais conhecida do mundo reverte o valor total das vendas de um dia especial para o tratamento de câncer infantojuvenil desde 1974 nos Estados Unidos e desde 1991 no Brasil, colocando o tema em exposição mundial há anos. Mesmo assim, o restaurante do mascote Ronald McDonald foi altamente criticado pelos usuários das redes sociais por não participar da ação de marketing do Burger King, e não pela contradição de vender lanches com excesso de ingredientes químicos e gordurosos que, contraditoriamente, aumentam as chances de desenvolver doenças de saúde, entre elas o próprio câncer. 

O papel do consumidor 

No mesmo dia em que o McDonald’s anunciou sua recusa, outros restaurantes de fast food imediatamente aproveitaram a imensa repercussão na internet para entrar no jogo. Até mesmo uma pequena rede de Natal, no Rio Grande do Norte, chamada Lettuce e que vende sanduíches naturais tentou pegar carona e propôs a criação de um LettWhopper, que formaria um híbrido de hambúrguer com pasta de atum e cenoura. A proposta foi ignorada pelo Burger King e o post foi apagado da timeline da marca regional. 

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 Entre os brasileiros, quem teve mais êxito foi o Giraffas, que também se manifestou prontamente pelas redes sociais e recebeu incontáveis elogios dos usuários. A marca é uma das cinco que participam do Peace Day Burger e enviou inclusive uma equipe para Atlanta que ajudará nos trabalhos de preparação e distribuição do lanche. Além disso, a empresa teve que doar uma quantia estabelecida para a ONG Peace One Day – o valor não foi revelado – e os restaurantes da rede, tanto no Brasil quanto as 11 unidades no estado norte-americano da Flórida divulgarão a participação no evento por meio de ações. 

O diretor de marketing do Giraffas, Ricardo Guerra, aponta que o marketing de causa atualmente faz parte da estratégia da empresa e enalteceu a parceria que mantém há três anos com o Instituto Ayrton Senna. Um dos resultados dessa associação, além das contribuições financeiras para projetos de educação, é que o restaurante tirou os lanches pouco nutritivos do cardápio infantil junto com as promoções de brindes para as crianças – a chamada venda casada, em que empresas incentivam o consumo infantil por meio de brinquedos, atualmente é proibida no Brasil. O executivo ainda destaca o compromisso em promover o tema da saudabilidade com refeições mais nutritivas e a realização anual do “Dia de Comer Bem”, evento que estimula o consumo de comidas saudáveis. 

No caso do Peace Day Burger, no entanto, Guerra admitiu ao propmark que a proposta de se juntar ao Burger King foi muito mais motivada pela repercussão do que pela própria causa. “Se eu disser que de uma hora para outra queria ajudar a paz mundial, sei que não vou enganar ninguém. Foi uma ação para buscar visibilidade”, diz. “Mas realmente já temos um compromisso em associar consumo com marketing de causas como a educação e a saudabilidade, o que nos deixa com a consciência tranquila quanto à participação neste evento”, justifica. 

Facebook Giraffas/ Divulgação

Guerra fala abertamente sobre o complexo jogo em que empresas se associam a causas sociais ao mesmo tempo em que precisam ser lucrativas. Para ele, o marketing de causa está em evolução, mas ainda necessita crescer mais e os consumidores devem impulsionar a prática ao reconhecer e valorizar essas ações. “O consumidor também precisa valorizar mais a causa. Se ele quer discutir as marcas em vez do tema social, ele também está falhando. Quando colocamos posts relacionados às ações que fazemos com o Instituto Ayrton Senna, conquistamos menos engajamento do que quando postamos nossas girafinhas fazendo piadas. O consumidor ainda não responde do jeito que a gente queria”, afirma. 

O executivo do Giraffas declara que, apesar de os líderes da nova geração estarem mais dispostos a investir em projetos e ideias sociais, são os consumidores que têm o verdadeiro poder de estimular a prática. “Na medida que o consumidor exigir que invistam em causas socias, mais as empresas vão colocar isso no escopo delas. A elite brasileira evoluiu muito, mas ainda temos que melhorar muito mais como consumidores. Cultura e hábito a gente desenvolve no médio e longo prazo. Tomara que um dia a maior parte do meu investimento seja direcionado a causas atreladas à venda de um benefício social”, declara. 

No ponto de vista da publicitária e ativista social Gisela Rao, que recentemente participou do lançamento do projeto “Estou Refugiado”, que conscientiza sobre a situação de refugiados que estão no Brasil, a sociedade já está se movimentando na direção de dar preferência a empresas socialmente engajadas. “É fundamental as empresas estarem entrando nas demandas sociais, principalmente porque as pessoas estão esperando muito mais e elogiando quando isso acontece. A internet trouxe mais informação e consciência nas pessoas. Quando marcas se posicionam, mesmo que se coloquem em primeiro lugar, já ajudam.  Qualquer coisa é melhor do que nada”, opina. 

Já para o especialista em informação internacional Christian Zampini, italiano radicado na Espanha, os próprios consumidores também costumam fazer vista grossa para certos casos, algo que no fim permite que as empresas explorem as causas sem tanto comprometimento com o bem-estar do ser humano ou do meio ambiente. Ele analisa casos como Apple, Benetton e Zara, que continuam sendo algumas das marcas mais admiradas do mundo mesmo com denúncias do uso de mão de obra semiescrava que pairam em cima delas. 

“Para o consumidor, é mais fácil aceitar o marketing do que analisar criticamente a verdadeira atuação das companhias. Se as notícias jornalísticas expõem algum ponto negativo sobre essas marcas com influência na mídia e a campanha de marketing e relações públicas passam uma mensagem boa, elas preferem ficar com a mensagem boa. Assim podem abastecer seus carros com gasolina de petroleiras responsáveis por desastres ambientais ou comprar o novo iPhone sem culpa”, diz Zampini. 

A reportagem procurou o Burger King para participar da matéria. A assessoria de imprensa no Brasil alegou que somente os executivos globais estavam autorizados a comentar o assunto. Até o fechamento da matéria, os representantes globais da empresa não responderam as questões enviadas.